quinta-feira, 19 de março de 2009

Senhor dos Destinos


Cláudia Magalhães



Quarta-feira, 18 de março de 2009

Caro Sr. Fulano,

Possuo uma crueldade excepcional que, quando adormecida, cede lugar a uma ternura intrigante, curiosa, que me entorpece, me alivia. Sou escravo dessas duas realidades. Elas me fazem nascer e renascer, todos os dias, e me tornam humano. Sempre que atravesso a delicada e invisível fronteira que as separam, sou tomado por uma espécie de estupidez execrável que, com o passar dos anos, me fez perceber que o espaço que separa a vida da morte é feito de silêncio, do simples quebrar de um salto, de uma brevidade não medida pelo tempo. Somos movidos por uma bomba-relógio chamada coração, cujo controle não nos pertence. Deixei de sentir revolta, aprendi a não brigar com o que desconheço, perdi o sentido do pecado.

Acredito basicamente em três coisas: na inexistência de Deus, na existência da maldade e na magia da Literatura. Ah... A Literatura! Ela coloca fantasia na sola dos meus pés, arranca minha língua, educa meus ouvidos e quando dou por mim, sou mais um personagem dos Deuses de minha vida. Identifico-me bastante com Édipo, todos os dias, quando acordo, furo meus olhos para não enxergar a podridão do mundo.

O que falar da Literatura que provoca? Que destrói o belo e se masturba quando apresenta as baixezas do homem? Engana-se quem acredita que ela não espera por resposta. Todo bom livro delira de gratidão quando nos arranca uma lágrima, de alegria ou de dor, que usa, sabiamente, para afogar suas traças.

Nada há de extraordinário em minha vida. Rejeitado pelos meus pais, ainda adolescente, eu roubava para sobreviver. Amante da solidão, usava o dinheiro para pagar o quartinho fétido da pensão, comprar comida e livros nos sebos da cidade. Antes de dormir, sentava com alguma bebida barata e escrevia sobre o meu dia, hábito que mantenho até hoje. Escrever é minha única forma de perder a sanidade quando não estou vendo um bom filme ou lendo um bom livro. Não conseguindo viver na “normalidade”, escondo-me em qualquer lugar dentro das infinitas possibilidades das palavras, em seus altares devassos, em seus inferninhos divinos, onde o ponteiro do relógio move-se na velocidade e na direção dos meus pensamentos, onde a única lei é a de perder o juízo. Sem escrever, enxergaria minha existência da mesma forma que meus olhos, desprovidos de um espelho, enxergariam minhas costas.

Aos vinte e dois anos, cometi meu primeiro crime. A boa quantia em dinheiro apagou, rapidamente, qualquer possibilidade de remorso, afinal, aquele pobre homem poderia, ao atravessar uma avenida, tropeçar em alguma pedra solta e ser fatalmente atropelado. Quem pode prever o futuro nessa bola que gira manipulada pelo desconhecido? Desde então, passei a viver, sempre, de malas prontas. Não permaneço mais que uma semana na mesma cidade. Motivo pelo qual dou de presente meus livros assim que os termino de ler, mas sempre com a dedicatória: Cuide bem deste livro, ele salvará sua vida!

Hoje, o senhor me fez viver um fato curioso, mágico. Quero que atire nas duas partes podres do corpo daquela filha da puta: na buceta e no coração! Foram suas últimas palavras no início da noite. Depois de anotar o endereço, seu rosto, antes nervoso, estampou uma sensação de solidão absurda. Seria essa a face do amor contrariado? Por que sofrer por um simples abandono? Desgraça maior é morar num apartamento luxuoso sem estantes, sem livros! Bem, isso, agora, não importa. Saí da sua cobertura elegante, parei num boteco de esquina, em frente ao fatídico hotel e pedi um conhaque. Quanto mais aproximava a hora marcada, mais aumentava minha excitação. Uma espécie de gozo contido queimava meu juízo e me fazia beber compulsivamente. Não tardou para que ela aparecesse na rua deserta, com um vestido solto, preto, que lhe ia até a altura dos joelhos. Aproximei dela com a fúria de um animal selvagem desprovido de alimento. Assustada com o barulho dos meus passos, ela virou abruptamente e protegeu o peito segurando com as duas mãos um livro: Diário de um Ladrão, de Jean Genet! Gelei até os ossos. Em minha mente, somente, as palavras daquele Deus, cujo túmulo não poderia depositar flores: Conservei-me atento para agarrar esses instantes que, errantes, me pareciam estar a procura, como de um corpo, uma alma penada, de uma consciência que os anote e os experimente. Quando a encontram, param: o poeta esgota o mundo. Essa lembrança eletrizou meus cabelos, escorreu pelas minhas costas, preencheu minha coluna e virei verso. A minha alma farta de poesia assumiu proporções indescritíveis. Vestindo de letras as minhas fraquezas e a minha maldade, tornei-me a mais bela das criaturas. Observando a minha cara assassina coberta de vergonha, ela correu assustada, em direção ao hotel. Se prosseguisse com meu plano, desmoronaria. Não poderia matar alguém com um livro que me fez encontrar o vazio, a existência do mundo e a certeza de saber que não o possuo.

Coloco, agora, sob o seu cadáver essa carta para que outros a leiam quando o encontrarem em sua luxuosa cobertura "sem livros". Peço-lhe perdão, embora não sinta o menor arrependimento, afinal, você poderia tentar, novamente, matar o que temos de mais belo e raro: bons leitores! Quanto ao senhor, quem se importa? O senhor poderia atravessar uma avenida, tropeçar em alguma pedra solta e ser fatalmente atropelado. O que me resta dizer? Desgraça maior é ser Lady Macbeth e ser coroada com a loucura, é ser Othelo e não poder viver em paz seu grande amor, é viver numa mansão sem livros, é saltar para o nada sem ter conhecido o lirismo de Genet!



Ass.:Um amigo.

15 comentários:

Rodrigo Soares disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Belo e louco!
Bjão!
Lívio

Anônimo disse...

Esse teu personagem sofre de transtorno bipolar. Li tudo de Jean Genet e assisti as peças. A última que ví foi Nossa Senhora das Flores, no teatro Cacilda Beker. Tem uma cena que o ator representa sentado num vaso, sem calças, como se tivesse fazendo cocô. Ele ficava em um pequeno tablado a uns quatro metros de altura. Num dia ele despencou lá de cima e se machucou um bocado. Dizem que foi maldição.Os seus escritos me lembram também Edward Albee. Ele escreveu as peças: Zoo Story, O sonho Americano, Quem tem medo de Virginia Woolf? (essa fizeram um filme), Um equilibrio delicado, Três mulheres altas e agora A cabra ou Quem é Sylvia. Esta última está em cartaz no Rio com José Wilker. Tudo haver com os seus textos. Beijos,

Rodrigo Soares disse...

Estoteante !!

Como sempre vc nos deixando presos ao texto de uma forma inigualável..

P.S: Já podemos esperar o livro "Contos de Cláudia Magalhães" ?!
rsrs

Beijao !!

Iara Maria Carvalho disse...

Menina, que discurso, que existência!

Gostei do texto e mais ainda por te ver de volta ao seu Paraíso!

Um grande beijo...

Anônimo disse...

boa tarde minha querida Claudia maganhães... já tive a felicidade de apresenta dois trabalho de teatro com os seu belissimos textos. 1ª oratorio de santa luzia- diana fontes eu era pascasio. e o segundo foi o da minha cia dell'art. adoro vc eternamente

Regina disse...

Mulher, que louco não!!De uma beleza intensa que sempre me contagia..
Mais uma vez, te parabenizo. És surpreendente.
bjs

Moacy Cirne disse...

Oi, você continua afiada. E sensível.
Quase um conto-ensaio.

Abraços.

cisc o z appa disse...

há muito não como
um texto
e agora como

há muito não fico intrigado
desde quando percebi
que o pão é trigo
como trigo
parei de intrigar

mas aqui
estou instigado
com esse exercício de comer palavras
palavras que robei desse texto
robei para comer
com a insurgência de genet
ex nihilo in nihilum

uma escrita da descontinuidade
somente a consideração de um fim
permite conceber uma continuidade
em todo o lugar do texto
apenas a descontinuidade é provável
e provo essa palavra agora
no esôfago
aprendi a comer palavras com dan lima e com gudiño kieffer
e
nesse textointestino
por mais infinitesimal
que seja a passagem de uma forma a outra
é sempre um salto
uma catástrofe
de onde resultam inopinadamente
as formas mais estranhas
mais anômalas
sem consideração pelo resultado final
mais perto de nós
as línguas são um belo exemplo
dessa descontinuidade singular
e
concordando com genet e cioran
se a vida tem um sentido
nesse caso
somos todos uns fracassados...

evoé!

Cefas Carvalho disse...

Belo e estranho conto, evocando mestre Genet e versando sobre dois temas relevantes: violência e arte. Parabéns, minha escritora favorita. Beijos.

Cefas Carvalho disse...

Ah, eu também quero tomar o que o Fernando (texto acima) tomou? Vende na farmácia? Compra no Passo da Pátria? É caro? Eu sei que eu quero também...

ON THE É (nada do que não era antes, quando não somos mutantes) disse...

pulsa forte, redemoinho, intercambio de emoções
bj
Cgurgel

Regina disse...

Uma narrativa inteligente, sensível, tocante...
Conseguiu unir de uma forma muito bela duas paixões.
Grande bj

danilo disse...

...llendo seu conto, também virei verso. e anverso do verso. sua prosa é porosa, como diz o ciscozappa, inspira, respsira, transpira, pira. sua poesia é presente e pressente a bewleza do verso em cada palavra encadeada, em cada fonema escrrito... vim aqui por meio do zappa e, confesso, gostei demais... virei mais vezes visitar teus textos... Dan Lima, um devorador de palavras

Unknown disse...

café da manhã com espancamento,senti mental...
adorei o apanhado !! !!