domingo, 15 de novembro de 2009

Meio Fio

Cláudia Magalhães



Há dias que possuem vida própria e são dotados de uma consciência má, hábil, que adora o perigo das coisas subterrâneas, de tudo o que nos causa espanto, nos fazendo em poucos segundos beber a beleza e vomitar os desejos de uma vida inteira. Em mais um desses dias, sentado no meio fio, ele mergulha a mente na idéia de felicidade, aproveita a distância da mulher amada, toma por vezes o seu lugar, moldando-a de tal forma que ela atenda a todos os seus desejos e, em menos de uma hora, mesmo ausente, ele jura ser capaz de apalpá-la.
O barulho de algumas pessoas se aproximando o faz voltar a realidade e ela escapa dos seus pensamentos. Se ao menos tivesse uma daquelas pedras que experimentara pela primeira vez na noite anterior junto àqueles mendigos. Ela lhe permitiria ir até o outro lado do mundo. Lá, vestido com elegância, encontraria o seu amor em algum sonho, a cobriria de flores e depois ficaria em silêncio até acalmar o espírito. Pega a garrafa de cachaça e toma um gole. Aquela seria a última garrafa, depois voltaria pra casa. As pessoas que passam o olham com desprezo. Idiotas! Imbecis! O que eles sabem sobre o amor?, pensa vendo o Sol se aproximar da sua cama de papelão improvisada no canto da parede. Há quanto tempo estaria naquela rodoviária? Seriam dias, meses ou anos? Perdera a noção do tempo. Estava exausto, não pregara o olho a noite inteira e a dor de cabeça que sentia lhe queimava o juízo. Vê o primeiro ônibus da manhã chegando. Hoje eu volto pra casa. Essa é a última garrafa. Vou voltar e passar um ano sem beber!, pensa tomando mais um gole da bebida.
Levanta e vai em direção ao banheiro. Observa, por alguns segundos, a sua imagem no espelho quebrado. Uma imagem tão distante do homem bem-sucedido de algum tempo atrás. Vê o rosto oleoso, a barba cheia e o olhar triste. Sente uma enorme vontade de se esconder, uma forte angústia no peito. Lava o rosto, as mãos, joga água nos cabelos longos e sujos e se penteia com os dedos. Toma o último gole da garrafa e a joga no lixo. Pronto. Aquela foi a última, agora voltaria pra casa. Sai do banheiro catando no bolso algumas moedas que mendigara na noite anterior e compra um pastel de carne. Sente a massa entalada na garganta. Força-se a comer, precisa aliviar a dor no estômago. A cada minuto a sua angústia aumenta. Sente-se depressivo, torturado. Preciso beber algo, pensa catando algumas moedas no bolso. Compra mais uma garrafa de cachaça, prometendo a si mesmo que aquela seria a última, depois pegaria um ônibus e voltaria pra casa. Senta no meio fio e começa a beber. Sente-se eufórico, leve e, de certa forma, feliz. A angústia desaparece dando lugar a uma imaginação rara, sem alicerces no tempo, nem passado, nem presente, nem futuro. Uma imaginação de algum lugar sagrado dentro dele, que desconhece ou ignora o seu drama. O rosto da amada lhe aparece, evocando todas as palavras que lhe são caras: amor, perfume, prazer, paz, sonhos... Ele mergulha a cabeça num mar vermelho de desejos e ao sabor da bebida, ela faz amor com seus demônios e tem filhos. Centenas deles.
O Sol já se despede enquanto ele observa a garrafa vazia. Sente um medo terrível. Tudo o que não vem de dentro dele o assusta, é pequeno, sujo. Gosta da solidão da bebida, de viver o que não existe. Ele ama. Cata as últimas moedas do bolso. Tinha o valor exato da passagem do ônibus. Agora eu volto pra casa, pensou mais uma vez. É isso. Voltaria e começaria uma nova vida. Ela se foi e deve estar feliz com isso. Não iria sofrer por ela. Vadia e fútil, com certeza já estaria seduzida por uma beleza nova. O mundo é tão grande... Mas o seu coração recusa a desprezar o que ama e se põe inquieto. Prepara dentro dele um buraco cheio de abandono, amargura e desilusão e misturado a esses monstros só pensa em lhe ferir. Ele chora. Chora porque procura aquela que perdeu, mas aquela que perdeu não o procura. Chora porque ela tem asas e ele, os pés na lama. Precisa de uma bebida. Ela o ajudará a sentir melhor. Se ao menos tivesse uma daquelas pedras...
Pega o dinheiro no bolso e compra mais uma garrafa. Senta no meio fio e toma um gole. Esta é a última, depois eu volto pra casa, pensa vendo os seis mendigos se aproximando ao longe. Seis, seu número da sorte. Ao menos passou a ser depois que a conheceu, constatou sorrindo, sentindo a angústia, novamente, ir embora.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

As Fotografias

Cláudia Magalhães



O mal-estar que sinto antecipa o erro que estou prestes a cometer. Clarice, cega há um ano, devido ao acidente que sofreu com Paulo, seu atual marido, precisa do meu relato. Tenho medo, mas não vejo outra saída. Encontrei-a, alguns meses atrás, saindo de um restaurante japonês com a sua mãe, e tornei-me, novamente, sua grande amiga. Falou da sua eterna paixão pela cozinha italiana e japonesa. Para meu espanto, estava segura e feliz com seu novo amor. Ele se tornou mais carinhoso e mais apaixonado. O amor que recebo é tão grande e verdadeiro que, depois de cega, passei a enxergá-lo. Ele tem a forma mais-que-perfeita e a palavra esperada como guia. Diante da vida, ele é tudo. Quando calmo e sereno, me faz chorar de emoção, e quando chateado, faz uma cara tão feia que me dá vontade de rir. Todos os dias, sem susto, ele queima minhas inseguranças, me livra de futuras cicatrizes, me deixa leve a carne, em fogo, pronta para cheirar as cores, pra enxergar o que não pode ser visto, pronta para o amor, disse-me, certo dia, com lágrimas nos olhos.
Observo, agora, sua vulnerabilidade e uma espécie de coceira na alma, que não consigo descrever bem, me impulsiona a falar:

- Eles chegaram. É uma bela mulher!

- Como ela é? Não me poupe dos detalhes, por favor! – implora com docilidade.

- Ela usa um vestido azul, justo, que revela um belo corpo e sandálias altas deixando-a na mesma altura que ele, que está de calça jeans e com uma camisa verde de mangas curtas...

- Eu dei essa camisa de presente a ele quando completamos dois anos de casados. É a minha cor preferida... – parou com a voz embargada. Respirou fundo e pediu - Continue.

- Ele a abraça com ternura e ela retribui o carinho cobrindo-o de beijos no rosto, até alcançar-lhe a boca. Quanta paixão eles exalam. Ela, agora, cochicha algo em seu ouvido arrancando-lhe um enorme sorriso. Isso me faz lembrar Carlos, de quando estamos em nossa intimidade e sussurro palavras picantes ao seu ouvido, ele fica louco de desejo...

- Pare! Não quero ouvir mais nada.

- Entendo.

Ela chora baixinho por alguns segundos. Abre a bolsa nervosamente, retira um elástico e prende os cabelos negros, que tanto realçam sua pele clara, num rabo de cavalo. Não resisto e começo a chorar, afinal, conheço bem essa dor. Quando ligo o carro para irmos, ela segura em meu ombro e implora:

- Vamos ficar mais um pouco. Continue, preciso recorrer às suas palavras, ao menos elas serão fiéis aos fatos e darão a medida exata da dor que devo sentir.

Continuo narrando sabendo que a natureza da minha ação não é bondosa. Desejo fugir, mas a minha vontade de ficar pesa e esmaga o meu medo. Uma vontade machucada, e por isso, inteligente, criativa. Agora, não é somente essa vontade que pesa, mas todo o meu corpo. Algumas pessoas dariam o nome de “maldade” a esse peso, mas na verdade é somente um meio de salvação. Olhando para o vazio, continuo inventando uma paixão rica em detalhes. Criando uma situação que não existe, me vingo, destruo o amor cego de Clarice.

Uma hora depois, paro o carro em frente à sua casa. Por um instante, tenho a vontade de lhe contar uma história bonita, de voltar atrás.

- Chegamos, amiga – digo com ternura.

- Não queria me separar de você. Não queria ficar só – fala com voz trêmula.

- Gostaria de ficar e te fazer companhia, mas infelizmente preciso ir. Carlos deve estar me esperando para o jantar. O que você pretende fazer?

- Ainda não sei. De qualquer forma, obrigada por tudo – fala entregando-se a um choro profundo.

- É para isso que servem as amigas, querida – Nos abraçamos por um bom tempo. Ela estava nitidamente abalada. Sabia que rumo sua mente tomaria de agora em diante. Se antes era capaz de acreditar no sofrimento das flores, agora pregaria a inexistência de Deus. Parti me sentindo suja, vil, pérfida. Mas a certeza que tenho, minutos depois, de que o amor é realmente cego, esmaga a minha violência, a minha injustiça.

Chego em casa antes das seis da tarde. Carlos ainda não chegou do trabalho. Vou direto ao guarda-roupa e retiro, debaixo de uma pilha de casacos, duas fotografias. Na primeira, Clarice e Carlos sentados na areia de uma praia que costumamos freqüentar. Ele está lindo, com um sorrido doce, encantador. Na outra, uma foto nossa, também sentados na mesma praia, onde ele sorri com amargura. Amargura, talvez, imperceptível para alguns, mas não para mim. Através dessas duas fotografias descobri o seu segredo. O seu olhar, a sua postura, o seu sorriso na primeira, revelam o real motivo de continuarmos freqüentando, sempre, a mesma praia, da sua paixão por comida italiana e japonesa e da cor verde nas paredes do nosso quarto. Choro, agora, diante da nossa fotografia. Pintei meus cabelos de negro e há muito não tomo sol. Talvez eu fosse mais feliz se fosse sozinha, não precisaria dar beleza ao que deveria desprezar. Escuto o barulho da porta se abrindo. Segundos depois, Carlos entra no quarto, me beija apaixonadamente e diz que sou a mulher da sua vida. Fala tão docemente que chego a ter total certeza do seu amor. Lembro de Clarice, e nesse momento ela não é mais inatingível, não é maior ou melhor que eu. Eu a atingi no peito e fui embora, deixando-a em sua casa e no meu passado, até chegar o momento de, novamente, encarar as fotografias.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Monstros


Cláudia Magalhães



Depois de quarenta anos sonhando acordada com um mundo que não fosse manipulado pelas emoções, onde não existissem sentimentos de horror, nem de piedade, esse monstro de riso abafado, grosseiro, preso na garganta por um bolor de futilidade, aprendi a enfrentar minhas emoções. Hoje, sou eu quem me persigo. Às vezes, tiro-as do comando, me enxergo, descubro a inteligência e colho flores; Em outras, deixo-me guiar até meu centro escuro, sem limite de espaço e de tempo, perco a chave, fujo de mim mesma, sangro. Ingerindo razão e emoção no mesmo prato, decido qual dos dois será o excremento. Não sei em qual desses opostos me ofereço amor, pensou observando o filho cair em sono profundo no seu colo, causado pelo efeito dos sedativos.
Sim, essa massa branca, disforme, que há quarenta anos rasteja pela casa soltando grunhidos, é o meu filho! Como eu o amo!, constatou com tristeza, acariciando o fruto de um amor que teve aos trinta e cinco anos e que desapareceu logo após o parto, deixando como única prova de sua existência os míseros depósitos feitos, todos os meses, em sua conta. Não sabia o real motivo daquele gesto, talvez ele estivesse envenenado de piedade, ou quem sabe, guiado pelo medo de se perder da estrada que acredita um dia levá-lo ao Paraíso. Desde então, ela passou a dedicar-se religiosamente a seu filho e a protegê-lo de um mundo de olhos amedrontados, de nojo, de conversas rasteiras e tolas, de orações sem fé perdidas ao vento. Bom dia, Senhora! Como vai o seu filho?, lembrou da pergunta da vizinha que encontrara, pela manhã, no mercado da esquina. Como Deus quer!, respondeu secamente. Todos os dias, eu oro por ele e por meu filho, que, agora, passou a andar com gente da pior espécie!... Cada um com a sua dor!, concluiu com um olhar de mártir. Mal sabe essa mãe o quanto eu gostaria de chamar meu filho de ladrão, de mentiroso, de homicida. De vê-lo chegar tarde da noite com cheiro de vida, sangue, lágrimas, suor, saliva, com sede de rua. De quantas vezes desejei amar novamente, mas não poderia suportar ver no ser amado, desejado, a expressão miserável de escarro, o vômito reprimido, uma compaixão monstruosa que só serviria para aumentar a vaidade de Deus, pensou com amargura. Lembrou, então, de todas as noites, durante quatro décadas, em que colocou aquela cabeça disforme em seu colo e lhe falou da existência de monstros, de todas as espécies e de todas as cores, que, até hoje, evitam a sua calçada com medo da casa, que para eles é mal-assombrada, pois nela mora um anjo. Essa noite, doente e cansada, ela começa a falar sem conter as lágrimas:
- Um lindo anjo, com pernas de fogo, que desceu a terra escorregando pelo arco-íris, sentado sobre uma nuvem e vestido de Sol. E quando observava o meu semblante triste e cansado, deitava a cabeça em meu colo e, sem mover os lábios, aliviava meu pranto, dizendo-me que por trás desse mundo de sombras, a esperança é preservada. Não é sem razão que o amo! Hoje, meu anjo, nós vamos para o mundo dos sonhos, onde habitam seres encantados, iguais a você! Eles possuem um coração puro, não conhecem orações e nem pedidos. Não se importam com as aparências, vivem do simples e podem rir até mesmo de seus pequenos hábitos. Brincam de se reunir em volta de uma grande fogueira, onde contam histórias que nos enriquecem a sabedoria. Trocam presentes que se chamam: Amor pelo próximo! Amor abnegado! Amor! Lá, ninguém precisa falar! Tamanha é a cumplicidade que proferir uma palavra seria um desperdício. Nesse mundo, teu espírito será livre, minha criança. Lá, não existe velhice, ninguém dá adeus, ninguém vai embora, e eternamente te chamarei de: meu filho!
Levanta com passos firmes, decididos, joga gasolina em seu corpo e em seu anjo adormecido. Espalha o líquido pelo chão do quarto e pela casa inteira. Volta até o quarto do filho, coloca novamente sua cabeça em seu colo, e pega, sobre o criado-mudo, o pedaço de papel com a oração de todas as noites, desta vez, com um cuidado demoníaco, pois chegara o dia da cobrança e não poderia esquecer nenhuma palavra. Risca o fósforo, joga-o sobre o tapete do quarto e começa a sua oração:
- Ave-Maria cheia de graça... Que graça é essa que se faz presente agora? O Senhor é convosco... Ele não enxerga o meu sofrimento? Ele não vê que a minha alma não encontra consolo porque não nos achamos na mesma condição! Bendita sois vós entre as mulheres... Mulheres? As mulheres da terra existem para o sofrimento e são entregues a dor sem piedade. Ao conceber o seu filho concebe também um amor que nenhum freio segura e a vida, no momento que lhe convém, o transforma em nosso maior inimigo, fazendo-nos pagar tão caro a maternidade! Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus!... Porque o meu já caiu na desgraça. Vejo aquele que gerei, que deveria ser testemunha da minha velhice e enterrar-me com suas próprias mãos, entrar e sair desse mundo como um verme! Será esse nosso castigo: Dormir sonhando com o céu e acordar no inferno? Santa Maria, mãe de Deus!... Eu quero a sua presença agora! Receba em teu reino o filho dessa tua miserável serva para que nada lhe falte. É o seu dever, pois és mãe e és Santa! Rogai por nós pecadores... Porque toda mãe ama seus filhos de alma para alma, com suas faltas, seus erros e seus sonhos inúteis! Que em teu seio, ele encontre morada; nas tuas palavras, a luz; no teu amor, o perdão de ter nascido torto! Peço-te agora a morte! A velhice já me destrói as carnes, a qualquer momento a vida poderia me cuspir e o meu anjo viveria nesse mundo como um cadáver. Estou pronta, e já aguardo o momento de reencontrar o amor perdido...
Nesse momento, o fogo estende-se na direção deles. Um fogo real, nobre, consome o corpo da velha mãe e do seu herói, que tantas vezes sonhou em chamar de ladrão, de mentiroso, de homicida. Agora, a terra gira devagar, cuspindo o amor nobre, que tanto procuramos e que, cansado, punido, foge da vida, buscando refúgio em nossos sonhos.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Lua Negra


Cláudia Magalhães



É através da vontade, de uma grande vontade, que um amor se prende a outro, o resto é solidão, erro que cola à alma dos que não cedem, não insistem ou simplesmente não o aceitam em sua essência, penso eu. Como me chamo? Ora, que importa meu nome? Iguais a ele existem milhares de outros no mundo, e o que difere as mulheres uma das outras são as intensidades de suas vontades, metade delas na cabeça, a outra metade em suas luas que renovam o mundo quando levantam as saias.
É certo que essa renovação depende, por um lado, da qualidade do ventre, um ventre imundo só pode gerar criaturas imundas, e por mais que a alma seja limpa, perfumada, o simples contato de um com o outro acaba por contaminá-la. Por outro lado, temos a participação do sêmen que, movido pelo acaso, pode doar sua melhor ou pior parte. É dessa forma que construímos o mundo, sim, nós, posto que deus é puro demais para isso.
Nesse mundo, nasci. Em uma rua qualquer, numa cidade qualquer. Informações que não posso revelar, pelo simples fato que, algumas horas após meu nascimento, ainda cheirando a sangue, fui posta enrolada num lençol sujo, fétido, presumo, na porta de Carmem e Manoel, um casal distinto, donos de uma pensão.
Seja por bondade divina, seja por desejar algum lugar no paraíso ou por mera curiosidade humana, ou seja ainda por pura piedade desprovida de qualquer interesse (Se é que isso, realmente, existe!), os donos da pensão me adotaram como filha, a partir daí, passamos a sentir um amor grande demais para não matar, roubar ou trair.
Tímida, cresci indo da escola para casa durante a semana, e de casa para a igreja aos domingos, onde conheci o meu marido, Paulo, primeiro e único namorado, ambos com dezessete anos, no ano em que concluíamos o segundo grau e que nos preparávamos para o vestibular. Infelizmente, minha mãe veio a falecer nesse período, o que me fez adiar a faculdade para cuidar do meu pai, já com setenta e dois anos, e da pensão. Nesse mesmo ano, me casei e, no ano seguinte, realizei o maior sonho dele, ter um neto. Nunca morri de amores por Paulo. Éramos na verdade mais amigos que amantes, além disso, éramos bem parecidos, extremamente tímidos. Na verdade achava a minha vida monótona e sem graça.

Cuidava da pensão sozinha, desde as refeições servidas até a troca de uma lâmpada, posto que Paulo tem aversão a qualquer tarefa doméstica. A pensão é pequena. Um primeiro andar cor de abóbora, recuada, sem muro, com um pequeno jardim na entrada. No térreo, temos uma espaçosa varanda, onde geralmente me deito para ler enquanto meu filho brinca, uma sala de tv, a cozinha, dois banheiros e um enorme quintal. No andar superior temos seis quartos, um do meu pai, outro meu e de Paulo, e o restante são ocupados geralmente por estudantes universitários.

No quarto ano de casamento, enquanto meu filho tirava um cochilo depois do almoço, e eu descansava na rede da varanda lendo Bel-Ami, de Maupassant, Clara apareceu. Era uma estudante de jornalismo e procurava um lugar mais barato e próximo da faculdade. Extremamente comunicativa, não necessariamente bonita, mas tinha certo charme. Alta, cabelos castanhos, curtos e um sorriso cheio, encantador. Acertamos sua estadia e conversamos por horas sobre a minha grande paixão, os livros. À noite, apresentei-a a Paulo, que chegava do trabalho. Ele trocou meia dúzia de palavras e subiu para o quarto. Continuamos nossa conversa literária durante o jantar. Estava extremamente feliz, tínhamos tantas afinidades e ela era uma excelente companhia. Passei a esperar, com ansiedade, a hora dela voltar da universidade para as nossas longas e intermináveis conversas. Observei que, todos os dias, ela e Paulo chegavam juntos por volta das dezenove horas. Paulo trabalhava numa loja de informática perto da faculdade e, coincidentemente, eles pegavam o mesmo ônibus. Chegavam sempre sorrindo, animados. Na segunda semana, isso passou a me incomodar, o que fez com que eu passasse a evitá-la. Clara passou a ser uma obsessão. Passei a ter insônias terríveis imaginando um possível romance entre os dois e todas as noites, antes de dormir, eu perguntava as mesmas coisas:

- Clara lhe atrai, não é mesmo?
- Porra, eu já pedi que parasse com essas perguntas idiotas!
- Está gostando dela, não é?
- Claro que não! Quantas vezes eu vou ter que repetir isso!
- Você fica todo alegrinho quando ela está por perto.
- Você é louca!
- Eu sei de tudo...
- Tudo o quê?
- Você sonha com ela todas as noites...
- Eu vou embora daqui. Estou falando sério!
- Tanto faz...

Ele achava ridículo o meu ciúme, o que me causava grande revolta. Senti algo estranho, um deserto no peito. Passei a não suportar as luzes e a andar pela pensão feito um réptil, grudando nas paredes, me arrastando pelos cantos, pisando mole no chão, para poder vigiá-la. Ela não saía do meu pensamento...
Certa manhã, encontrei a porta do seu quarto entreaberta. Entrei e a vi adormecida sobre a cama. Senti uma vontade enorme de destruí-la. Não sabia de onde vinha tanto ódio, não ainda... Observei, pendurado por um fio de nylon grosso na parede mofada da cama, um enorme espelho. Peguei uma vassoura que estava próxima a porta e com o cabo empurrei com cuidado o fio até a pontinha do prego enferrujado e saí com o coração aos saltos em direção à cozinha. Coloquei uma xícara de café e fiquei esperando. E se ele não cair? Bem, só me resta esperar... Nesse momento, escutei uma pancada seca seguida de um grito fino, estridente. Maldita! Eu sou uma grande Maldita!, pensei correndo em direção ao quarto dela. Ela estava em pé, de costas, aparentemente sem nenhum arranhão. Sem que ela me visse, voltei para meu quarto e encontrei Paulo sentado na cama.

- Que barulho foi esse? – perguntou ainda sonolento
- O espelho do quarto de Clara caiu – falei andando, sem parar, de um lado para o outro
- Essas paredes estão podres, a qualquer momento essa pensão desaba.
- Infelizmente ela não morreu!
- Você me dá medo...
- Então morra logo de uma vez ao escutar essa: Eu armei para o espelho cair! Entrei no quarto dela, hoje cedo, e enquanto ela dormia, com um cabo de vassoura puxei o fio de nylon até a pontinha do prego, mas o maldito espelho só resolveu cair quando ela já não estava mais na cama!
- Chega! Não agüento mais, vou embora desse inferno!

Arrumou, rapidamente, a mala e, sem dizer uma palavra, saiu. Fui em direção ao quarto dela, e a encontrei, sentada de costas, observando pela janela Paulo partir.

- Ele foi embora, está feliz por isso?
- Você sabe o que é frustração? – perguntou num fiapo de voz
- O quê? – perguntei sem entender qual era sua real intenção
- Frustração é querer, realmente, algo e covardemente deixá-lo pra trás

Apesar da penumbra vi que ela chorava. Senti um medo insuportável quando descobri, naquele instante, que todos os sentimentos que passaram pelo meu coração eu sabia diagnosticar, exceto o que passei a sentir naquele momento. Sem saber ao certo o que fazer, nem dizer, fui até a janela e fiquei observando o céu coberto de nuvens, e não menos nublado estava o meu olhar. Ela continuou baixinho:

- O amor foi criado por algum louco, de alguma parte de seu corpo, menos dos olhos, pois nada vê e por isso não privilegia os que enxergam. Talvez tenha sido criado da cabeça, pois seus atos são estranhos e incoerentes; para os que tentam compreendê-lo, queima-lhes o juízo; para os que tentam contradizê-lo, cava-lhes um buraco no peito, pintando seus dias de cinza; para os que tentam fugir, corta-lhes as pernas, fazendo dos que querem correr, rastejar. Somos parecidas, sonhamos com manhãs abençoadas por luas... e para os covardes essa lua é negra...

Um misto de medo e vergonha me invadiu quando senti suas mãos puxando levemente meus cabelos pra trás e com delicadeza serem trançados. A cada movimento delas, sentia nossas mentes se enlaçando como uma espécie de ritual maligno e irresistível. Não sei ao certo se perdia ou ganhava sensatez, quando minha mente, no lugar do recuo, resolveu ultrapassar a linha tênue que separa o amor do ódio, e este, quanto mais próximo do amor, mais terrível se torna e mais escorregadio, pois é feito de lama. Desabei no choro, sentindo minha alma viva, e nela restando, do meu passado, somente a estranheza dos sentimentos vazios. Vai amanhecer e o sol vai aparecer em forma de lua... , pensei prevendo o futuro. Segurei seu punho, sentindo seu coração pulsar fortemente, e sem poder suportar mais, entre soluços, desabafei: Eu te amo, Clara! Eu te amo...
Há dois anos estamos juntas e esse amor me realiza. Às vezes, ele se transforma num ódio passageiro causando grande confusão em meu coração. Qual a diferença do amor e o ódio, mesmo? Não importa! O importante é que, hoje, ele é apenas um pretexto para que eu possa dizer Eu te amo, e me fazer sentir viva, extremamente viva.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Senhor dos Destinos


Cláudia Magalhães



Quarta-feira, 18 de março de 2009

Caro Sr. Fulano,

Possuo uma crueldade excepcional que, quando adormecida, cede lugar a uma ternura intrigante, curiosa, que me entorpece, me alivia. Sou escravo dessas duas realidades. Elas me fazem nascer e renascer, todos os dias, e me tornam humano. Sempre que atravesso a delicada e invisível fronteira que as separam, sou tomado por uma espécie de estupidez execrável que, com o passar dos anos, me fez perceber que o espaço que separa a vida da morte é feito de silêncio, do simples quebrar de um salto, de uma brevidade não medida pelo tempo. Somos movidos por uma bomba-relógio chamada coração, cujo controle não nos pertence. Deixei de sentir revolta, aprendi a não brigar com o que desconheço, perdi o sentido do pecado.

Acredito basicamente em três coisas: na inexistência de Deus, na existência da maldade e na magia da Literatura. Ah... A Literatura! Ela coloca fantasia na sola dos meus pés, arranca minha língua, educa meus ouvidos e quando dou por mim, sou mais um personagem dos Deuses de minha vida. Identifico-me bastante com Édipo, todos os dias, quando acordo, furo meus olhos para não enxergar a podridão do mundo.

O que falar da Literatura que provoca? Que destrói o belo e se masturba quando apresenta as baixezas do homem? Engana-se quem acredita que ela não espera por resposta. Todo bom livro delira de gratidão quando nos arranca uma lágrima, de alegria ou de dor, que usa, sabiamente, para afogar suas traças.

Nada há de extraordinário em minha vida. Rejeitado pelos meus pais, ainda adolescente, eu roubava para sobreviver. Amante da solidão, usava o dinheiro para pagar o quartinho fétido da pensão, comprar comida e livros nos sebos da cidade. Antes de dormir, sentava com alguma bebida barata e escrevia sobre o meu dia, hábito que mantenho até hoje. Escrever é minha única forma de perder a sanidade quando não estou vendo um bom filme ou lendo um bom livro. Não conseguindo viver na “normalidade”, escondo-me em qualquer lugar dentro das infinitas possibilidades das palavras, em seus altares devassos, em seus inferninhos divinos, onde o ponteiro do relógio move-se na velocidade e na direção dos meus pensamentos, onde a única lei é a de perder o juízo. Sem escrever, enxergaria minha existência da mesma forma que meus olhos, desprovidos de um espelho, enxergariam minhas costas.

Aos vinte e dois anos, cometi meu primeiro crime. A boa quantia em dinheiro apagou, rapidamente, qualquer possibilidade de remorso, afinal, aquele pobre homem poderia, ao atravessar uma avenida, tropeçar em alguma pedra solta e ser fatalmente atropelado. Quem pode prever o futuro nessa bola que gira manipulada pelo desconhecido? Desde então, passei a viver, sempre, de malas prontas. Não permaneço mais que uma semana na mesma cidade. Motivo pelo qual dou de presente meus livros assim que os termino de ler, mas sempre com a dedicatória: Cuide bem deste livro, ele salvará sua vida!

Hoje, o senhor me fez viver um fato curioso, mágico. Quero que atire nas duas partes podres do corpo daquela filha da puta: na buceta e no coração! Foram suas últimas palavras no início da noite. Depois de anotar o endereço, seu rosto, antes nervoso, estampou uma sensação de solidão absurda. Seria essa a face do amor contrariado? Por que sofrer por um simples abandono? Desgraça maior é morar num apartamento luxuoso sem estantes, sem livros! Bem, isso, agora, não importa. Saí da sua cobertura elegante, parei num boteco de esquina, em frente ao fatídico hotel e pedi um conhaque. Quanto mais aproximava a hora marcada, mais aumentava minha excitação. Uma espécie de gozo contido queimava meu juízo e me fazia beber compulsivamente. Não tardou para que ela aparecesse na rua deserta, com um vestido solto, preto, que lhe ia até a altura dos joelhos. Aproximei dela com a fúria de um animal selvagem desprovido de alimento. Assustada com o barulho dos meus passos, ela virou abruptamente e protegeu o peito segurando com as duas mãos um livro: Diário de um Ladrão, de Jean Genet! Gelei até os ossos. Em minha mente, somente, as palavras daquele Deus, cujo túmulo não poderia depositar flores: Conservei-me atento para agarrar esses instantes que, errantes, me pareciam estar a procura, como de um corpo, uma alma penada, de uma consciência que os anote e os experimente. Quando a encontram, param: o poeta esgota o mundo. Essa lembrança eletrizou meus cabelos, escorreu pelas minhas costas, preencheu minha coluna e virei verso. A minha alma farta de poesia assumiu proporções indescritíveis. Vestindo de letras as minhas fraquezas e a minha maldade, tornei-me a mais bela das criaturas. Observando a minha cara assassina coberta de vergonha, ela correu assustada, em direção ao hotel. Se prosseguisse com meu plano, desmoronaria. Não poderia matar alguém com um livro que me fez encontrar o vazio, a existência do mundo e a certeza de saber que não o possuo.

Coloco, agora, sob o seu cadáver essa carta para que outros a leiam quando o encontrarem em sua luxuosa cobertura "sem livros". Peço-lhe perdão, embora não sinta o menor arrependimento, afinal, você poderia tentar, novamente, matar o que temos de mais belo e raro: bons leitores! Quanto ao senhor, quem se importa? O senhor poderia atravessar uma avenida, tropeçar em alguma pedra solta e ser fatalmente atropelado. O que me resta dizer? Desgraça maior é ser Lady Macbeth e ser coroada com a loucura, é ser Othelo e não poder viver em paz seu grande amor, é viver numa mansão sem livros, é saltar para o nada sem ter conhecido o lirismo de Genet!



Ass.:Um amigo.

sábado, 3 de janeiro de 2009

A Noiva


Cláudia Magalhães


Saltou da cama, temendo chegar atrasada. Era o dia do seu casamento! Ah, esse dia jamais será esquecido! A felicidade, assim como a tristeza, tem cheiro de fruta doce, pensou inspirando o suave odor do ar. Correu até o velho baú e retirou, com cuidado, seu velho vestido de noiva. Vestiu-se com dificuldade. O seu corpo agitava-se num vai e vem frenético. Estava, sempre, num balanço, tentando entrar em harmonia com o tempo. E nesse balanço, atingia vôos cada vez mais distantes. A porta do quarto foi aberta por um rapaz de rosto duro e frio, como todos naquele lugar. Não se importaria com ele, estava feliz demais para isso. Poderia, finalmente, reencontrar seu grande amor!
Em busca do seu coração, seguiu em direção ao pátio. Por que quanto mais queremos chegar a um determinado lugar, mais ele se torna longe?, pensou ao atravessar o longo e frio corredor. As pessoas, que por lá circulavam, não notaram sua chegada. Nenhuma alma. Nem grande, nem pequena. De nada adiantava expirar, com seu deslumbrante vestido branco, tanta felicidade. As pessoas não gostam do sucesso alheio. A felicidade, sempre, incomoda, pensou sentindo toda sua alegria pesar o ar.
Correu em direção ao que chamava de “pequeno jardim”. Nesse lugar, todos os dias, na mesma hora, o esperava sentada num banco, branco, de ferro, que ficava sob uma enorme mangueira. A vida é uma enorme repetição, pensou observando uma manga rosa, tão doce quanto seu coração, pendurada na frondosa árvore. Era a fruta mais bela que já vira. Precisava pegá-la, ela seria seu buquê e quando terminasse a cerimônia, a ofertaria ao homem amado. Ela representaria seu amor! Teria presente mais doce? Não, definitivamente, não! Ah, como o amava! Esse amor tomou conta do seu corpo e tornou-se seu universo. Não entendia o real motivo de ter sido abandonada por ele naquele lugar frio e autoritário, dependendo da bondade, indiferente, daquelas pessoas que entendiam, somente, de bulas de remédio. É certo que estivera completamente no escuro por algum tempo e que andara com as mãos no lugar dos pés, mas, agora, estava “recuperada”. Lutaria pelo homem amado. Subiria na árvore, mesmo que se machucasse. Seus arranhões seriam como uma carta de amor. Era necessário mutilar-se com algumas farpas para provar a grandeza do seu sentimento. Toda carta de amor deveria ser escrita na carne, com sangue, dessa forma, todas as promessas de amor virariam cicatrizes, acompanhariam todos nossos passos e jamais seriam esquecidas com o tempo, pensou ao subir na árvore. Alcançou a manga e colocou-a, com cuidado, no banco. Limpou o vestido. Arrumou os cabelos, jogando-os para o alto e, dando-lhes um nó, improvisou um rabo de cavalo. Estaria impecável quando ele chegasse. Depois de alguns segundos de silêncio, retomaria o fôlego e lhe daria um longo e caloroso beijo. Diria que o amava com loucura e sairiam, de mãos dadas, daquele inferno. Escreveriam uma linda história de amor no tempo e mostrariam as pessoas que o amor necessita de perdão. Pensou em como seria bom tê-lo de volta. Preparar com carinho suas comidinhas preferidas, fazer amor e adormecer em seus braços com a certeza da existência de coisas que nunca se acabam e que nos voltam mais fortes quando a esperamos com paciência e determinação. Limpou, novamente, o vestido. Desmanchou o rabo de cavalo e o refez com agilidade. Nunca estava bom o suficiente. O amor, também, é assim. Nunca é bom o suficiente. Por essa razão fora abandonada. Essa sua mania imbecil de querer tudo no seu devido lugar, de arrumar, incansavelmente, a louça, a casa, era uma prova do seu amor. Ao ter a certeza disso, ele a abandonou. Ele passou a odiá-la pelo simples fato dela o amar. Pegou a manga e observou-a com atenção. Nunca vira uma manga tão bela! Cheirou-a e, novamente, colocou-a sobre o banco. Tinha absoluta certeza de que, em algum momento, ela a faria sofrer. Todas as coisas boas nos fazem sofrer. Elas moram na esquina do amor com o ódio, concluiu com tristeza. Limpou o vestido, refez o rabo de cavalo, pegou a manga, cheirou-a e pensou com uma estranha surpresa: Nunca vi uma manga tão bela! Por duas horas, repetiu esse ritual, incansavelmente. Quando ele chegar, direi que o amo com loucura até a exaustão. Repetirei inúmeras vezes. A vida é uma grande repetição e usarei isso a meu favor, repetindo, somente, as coisas boas, concluiu com satisfação refazendo o penteado.
Faltavam poucos minutos para o pôr-do-sol, quando escutou o som de passos firmes. Eram eles. Malditos! Sanguessugas do inferno!, pensou sentindo um medo quase insuportável. Nesse instante, o céu fechou as pernas arrastando nuvens pesadas e cinzentas, e escondeu o seu azul mais profundo. Tudo ficou plano, reto, uniforme. Não havia estrelas, nem firmamento. Sumiram as cores e do arco-íris, somente o nada. Estava tudo acabado. Fechou os olhos e deixou-se molhar pela água que derramava em seu peito. Sem o seu amor, tudo seria somente chuva. Uma chuva que traria seu passado em relâmpagos, queimaria suas lembranças, reduziria tudo a cinzas, fazendo seu futuro fugir pela boca feito fumaça. Cantou em silêncio, vendo-o morrer arrastado pelo tempo. Olhou a manga e constatou que, em breve, ela seria apenas uma fruta podre ou, então, seria devorada por algum estranho. Soltou um terrível grito de dor. Não! Não deixaria ninguém meter as mãos no que tinha de mais doce. Aquela fruta era seu amor. Se alguém tinha que provar sua doçura, esse alguém seria ela! Devorou a manga e sentiu sua felicidade escorrer pelos dedos. Os dois homens observaram com uma estúpida frieza, por alguns segundos, aquela mulher de rosto inquieto, dando as costas à razão em nome do amor. Não entendiam que não existe nenhuma arma contra ele, somente uma defesa: a loucura. Essa fuga dos perigos da vida. É nesse repouso dentro de nós, que ela nos desmonta e nos torna vítima e algoz.
Deixou-se agarrar por eles. Não se moveu, nem falou nada. Tudo poderia ser usado contra ela. Atravessaram o longo e frio corredor. Deitaram-na na cama, deram-lhe alguns comprimidos e saíram. Nenhum sorriso, nenhum carinho. Não chorou, já estava acostumada com a frieza dos homens sem coração. Enfrentaria a insignificância dos momentos em que teria que viver como se nunca tivesse experimentado um grande amor. Não tinha escolha. Tomaria todos os remédios, faria todas as refeições, como um animal domesticado. No início, quando chegou naquele maldito lugar, tentou se rebelar, mas, tal qual um amor contrariado, todas as suas tentativas de se fazer ouvir foram usadas contra ela. Esperaria a próxima oportunidade e fugiria dali. As pessoas enlouqueceram. Elas não sabem mais amar, constatou com a loucura dos que amam demais.
Ele não apareceu. Teria mais uma chance? Não sabia. Restava-lhe sonhar. Talvez, a forma mais humana, mais justa, de viver. Nos sonhos, encontraria o poder da loucura, do seu lirismo, indispensável para alcançar o amor. Somente os loucos amam. Em algum deles, o reencontraria num lugar chamado poesia. E, com uma flor na boca, ele lhe diria, somente, palavras de amor. Ela escutou o barulho de risadas debochadas, dos enfermeiros, vindas do corredor. O mundo ignorava sua tristeza. Adormeceu chorando baixinho, sentindo o gosto, agora, amargo, do que já lhe fora doce, extremamente doce.