sábado, 27 de fevereiro de 2010

Amor em Paris


Cláudia Magalhães


Clara está no tempo dos amores mal curados, onde o gozo é controlado por um anjo ou demônio, e este ou aquele, deitado a seu lado, com a mão esquerda torna febril e trêmula a sua fenda e com a direita injeta em sua mente doces recordações do passado, paralisando-a por completo.
É meia-noite. Há horas, ela permanece imóvel em sua cama, lugar onde dormiu por seis anos com um amor que, por ingratidão e egoísmo, há uma semana não está mais ali. Algo difícil demais para se compreender e que torna loucos os que andam pela terra.
Ela leva a sua mão em forma de concha até o sexo, pois é assim que rezamos para o amor, e sonhando com os míseros segundos em que tocaria as estrelas, tenta acariciar sua lua úmida até ela tornar-se, novamente, seca, fazendo girar mais rápido o mundo, mas as lembranças do passado estrangulam seus dedos, enchendo-os de verrugas e vergonha.
A enorme vontade de tê-lo, de possuí-lo, a faz perder o juízo. Vou a Paris. Vou em busca de Vinícius!, pensa. Segundos depois, ela enfrenta descalça as ruas desertas e o frio da madrugada, usando apenas seu vestido longo, florido que, por vezes, usava como camisola. Seus gritos entram pelas frestas das portas e das janelas quebrando o silêncio que comanda a decência. Quando um ou outro a pergunta, O que aconteceu, mulher?, ela responde, Vou a paris. Vou em busca de Vinícius!, e segue andando pelas ruas do outro lado do mundo como se fosse a dona delas. Pergunta a todos os que cruzam seu caminho por um homem alto, barbudo e grisalho e diante do silêncio ela responde, Ele está em Paris! Ele está me esperando em Paris! E segue falando da importância das mãos, pois nelas moram as vontades mais urgentes, falando da imensidão do mundo e do desejo que tinha com o homem amado de morar na Cidade dos Sonhos, para novamente, falar das mãos e do desejo, repetindo, incansavelmente, as mesmas palavras. Tenta, por vezes, se calar e escutar as histórias sem pé nem cabeça dos homens, mas ela tem pressa em se livrar dos sofrimentos da vida e segue sem escolher o caminho e sem saber ao certo quem ela é, molhando os pés na lama acreditando que é o mar, vivendo de esmolas, bebendo cachaça ou conhaque, pedindo a benção a Deus que segurando-lhe o juízo não precisa fingir que lhe deu, até adormecer nos bancos das praças ou nas portas das igrejas e sonhar voando.
Uma hora depois que ela partiu, Vinícius, arrependido de mais uma vez tê-la abandonado, entra no apartamento. Vou pedir perdão e milhões vezes milhões de vezes direi que a amo e nunca mais a farei chorar!, pensa, procurando-a com o peito sufocado pela saudade, mas é tarde demais.
Ele a encontra no quarto com a alma liberta. Ora caminhando como uma rainha, ora curvando-se e implorando coisas ao vento. Minha carne foi criada do pó impuro. Meu cérebro, uma grande duna, com a memória e os desejos dos ventos, encheu com o mel do mundo e com os ferrões das abelhas o meu sangue, que de tanto morrer, gerou em meu peito um enorme coágulo chamado coração. Uso salto, quero meus pés com gosto de rua na direção dos abismos. Há muito tempo, o amor me ensinou a cair, agora quero aprender a voar, diz olhando para ele, mas nada vê. A sua carne está acorrentada pelas vontades de sua alma, que cansada de sofrer liberta-se de si mesma, vai a todas as partes do mundo e confunde-se com outras. Desatenta e livre, muda de vontade de uma hora para outra, se reinventa a todo instante. Suas pernas encontram becos escuros, lama, sargaço, o mar e a imensidão das águas, enquanto sua cabeça de lua abraça o cruzeiro do sul, a Ursa maior, as três marias, e não somente elas, mas toda a constelação. Múltipla, infinda, ela é a dama, a mendiga, a poeta, a vítima, a algoz, a que ri e chora ao mesmo tempo. Ela é Clara, a sua Clara! Ele observa a mulher que ama, que partiu sem volta para a cidade dos sonhos, deixando em seu peito uma chuva que nunca vai parar e os seus olhos enchem-se de lágrimas.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A queda dos Anjos

Cláudia Magalhães


Morrerei, pontualmente, às dezoito horas. Hora da queda dos anjos quebrando suas máscaras, fazendo uivarem os lobos da terra. A minha alma branca, mistura das cores e manchas do meu passado, partirá vendo o Sol, com seu hálito quente, levantar a saia da Lua e entregar-lhe os desejos da saliva do dia, fazendo-a parir estrelas.
Não! Não faço uso do deboche, nem perdi o juízo, aceito minha loucura e por isso considero-me são. Vivo de saudade e de milagres e afirmo que, pontualmente, às dezoito horas, soltarei a vida e descobrirei caminhos ocultos. Na companhia de uma bebida qualquer, papel e caneta, escreverei a última palavra do meu último verso, e nesse instante, Ela chegará com o seu amor hipnótico, me beijará apaixonadamente até que eu perca os sentidos. O meu corpo em riso libertará minha alma com tamanho desprendimento que faria chorar a mais terrível das criaturas. Em seguida, a seguirei devagar, sem nenhum alarde, pois assim fazem os que sabem morrer.
Ah, Morte amiga! Amiga eterna! Razão da nossa infância, mocidade e velhice. Testemunha única e silenciosa de todos os nossos atos, sem perdão ou punição. O que eu era antes da tua existência? Loucura minha... Tudo nasce e morre, menos você, única certeza, presente ou ausente. Desde que você levou o meu amor, há seis meses, aguardo a sua chegada feito um morto-vivo. Quantas milhares de alegrias eu tinha e em todas ela estava presente! Vem, afasta-me dos cansaços da vida e deixa-me beijar aquela que amo e que, agora, veste-se de asas e desejos que fogem da terra. Leva-me docemente ao seu encontro, deixa-me dançar em seus braços e, juntos, amar a tua simplicidade sobre uma estrela qualquer. Faremos amor sem os limites da carne, somente o comando das nossas vontades em febre sob o teu perfume de flores. Se bater em nossos corações alguma tristeza, não há de ser nada, é a dor da ausência indo embora. Deixa-nos chorar por alguns instantes, vista-nos de sonhos e depois por ser você a solidão, essa enorme vontade de ir, nos esqueça. Seremos, então, inspiração para os poetas, bêbados e loucos, únicos que sabem amar com dignidade. Ah, espera! Doce e amarga espera! Adeus!

Ele abandona a caneta sobre o papel, transpira muito. Com o coração explodindo na garganta observa, finalmente, o relógio da parede marcar, pontualmente, dezoito horas. A ansiedade em sua alma é tão grande que lhe causa dor física. Abre a gaveta do velho birô de madeira e, segundos depois, ouve-se o barulho do tiro.
O fim tão desejado não veio de lugar algum. A queda violenta fez nuvens pesadas e cinzentas esconderem as estrelas, trazendo a chuva que, nesse momento, para muitos, não é bem-vinda. Estava derrotado por completo. Nenhum canto de amor, nenhuma posse ou território marcado, somente uma eterna agonia solta pelo espaço e que, a todo instante, pousa na terra que apaga as pegadas e guarda a verdade da carne, o pó, e a verdade dos homens, o tudo e o nada, provando que mesmo sem a sua existência ela continua a girar.