quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Espelho, espelho meu!


Cláudia Magalhães

Estava nu diante do espelho. Olhou seus pés, as pernas finas, o tórax pouco definido, os braços compridos, as mãos grandes e magras, o rosto delicado, quase feminino. Gostou do que viu, exceto os pelos insuportáveis, que o deixavam nervoso, como se tivesse um grave defeito físico. Tinha dezoito anos e era virgem. Chamava-se Pedro, que significa pedra, contrastando com sua alma de cristal. Uma alma, com um brilho intenso, ofuscada pela imagem que sorria, falsamente, diante do espelho. Entrou no banheiro e depilou-se por inteiro. Lavou o corpo com água do chuveiro, e a alma, com água de chuva. Secou-se com cuidado e, sentado diante do espelho, que ficava ao lado dos porstes de Oscar Wilde e Arthur Rimbaud, seus ídolos, calçou as meias finas que estavam sobre a cama, cobrindo o sangue que teimava em lhe escorrer pelas pernas. É preciso ferir-se para continuar vivo, pensou observando os pequenos cortes sobre a pele. Roçou as pernas uma na outra. Nunca experimentara nenhum prazer maior que aquele. Colocou a sandália prateada, de salto finérrimo e, por último, o vestido vermelho de seda que lhe ia até a altura dos joelhos e deixava a mostra seus ombros delicados. Em seguida, seguindo a geografia da alma, pintou o rosto. Olhou-se no espelho e gostou do que viu. Pedro não mais existia. Pegou a bolsa e atravessou a sala com cuidado para não acordar sua mãe. Quando já estava próxima a porta de saída, escutou um leve ranger na madeira da escada. Sentiu o sangue gelar e, devagar, olhou para trás. A sua mãe a observava, na penumbra, imóvel. Abriu a porta, com pressa, e saiu para o deserto do mundo, com as pernas bambas, pisando no chão firme como quem pisa em areia fofa e quente. Com sede de vida, como um criminoso, um homicida.

Nunca conhecera o seu pai. A sua referência de família girava em torno da saia de sua mãe, Alma. Uma saia que cobria com sete anáguas uma lua cheia de desejo, com sede de Sol. O seu pai morrera de câncer quando ela estava grávida de sete meses, e com ele, a sua felicidade. Tornou-se uma mulher de poucas palavras, uma sombra da saudade. Dividia o seu trabalho entre a sua profissão de bibliotecária e os pincéis. Seus quadros, sempre, retratavam pessoas tristes, melancólicas. A sua forma de ver o mundo. O que minha mãe está pensando de mim nesse momento..., pensou ligando o som do carro. É certo que ela sabia que o filho tinha alma de mulher, mas, ela, nem ninguém, nunca o vira vestido como tal. Sempre o fazia trancado em seu quarto. Era filho único e o véu de noiva da sua mãe substituíra as bonecas que nunca tivera. Leve-me para sair hoje à noite, onde haja música e haja gente que seja jovem e viva..., a música de Morissey fez sua mente seguir viagem, suspensa na lua.

Chegou na Praça das Flores. Sentou numa das mesas e pediu uma cerveja. Sentiu os olhares curiosos, zombeteiros, que desconhecem o valor da vida, penetrar-lhe a carne e atingir-lhe o coração. Risos nervosos, gargalhadas debochadas soltas ao vento. Nesse momento, envelheceu dez anos. Cada segundo parecia horas. Sabia que precisaria enfrentar aquela situação, mas não resistiu. Com os cotovelos sobre a mesa, segurando a cabeça com as mãos, chorou desesperadamente, sem entender que aquela dor era, em parte, manipulada. Era o choro que alcançava o tamanho indefinido das poesias, das músicas, dos livros que povoavam sua cabeça cheia de sonhos adolescentes. Diferente de alguns que aconteceria ao longo da sua vida, mas não muito, já que todo choro arrasta uma série de lástimas, que sob o julgamento dos olhares externos, e por isso, afortunados, seriam, facilmente, lançados ao abismo. Sentiu saudade do seu quarto e dos inúmeros personagens imagináveis que o rondavam. Posso sentar?, perguntou um rapaz alto e magro, que surgiu a sua frente como um furacão, interrompendo os seus pensamentos. Acenou afirmativamente com a cabeça. Ele tinha os cabelos pretos, curtos e desalinhados, e enormes olhos castanhos com olheiras escuras que a encaravam destemidos. O seu coração saltou do peito, feito um animal selvagem, colando-se ao céu da boca, e o seu corpo ardeu em brasa, fazendo a tristeza evaporar-se por completo. Conversaram coisas incríveis. Era um paulista de vinte e dois anos, e estudava gastronomia. Estava em viagem de férias com os pais e aquela era sua última noite na cidade. Descobriram que gostavam das mesmas músicas, dos mesmos autores e eram apaixonados por cinema. Ele era uma pessoa excepcional e sua companhia a fez esquecer seu desprezo por grande parte da humanidade. Bem, já está amanhecendo... Eu preciso ir. Vamos viajar ao meio-dia e ainda precisamos nos despedir de alguns parentes. Além de descansar um pouco, é claro, ele falou com certa tristeza. Pediram a conta e seguiram em direção ao carro dela. Quer que te deixe em algum lugar?, perguntou na esperança que ele dissesse sim. Obrigado, estou de carro, agradeceu. Com um lindo sorriso, aproximou-se e, segurando-a pela cintura, beijou-a com paixão. Ela sentiu a vida começar naquele instante e feito criança explorou o mundo novo pela boca. Com a língua, livre no céu infindo da boca, mudando as estrelas de lugar, descobriu seus desejos mais secretos. Salivando mel, engoliu, naquele beijo, toda a doçura do mundo. Um encontro de alma para alma, tanto mata, quanto faz nascer!, pensou observando ele desaparecer, lentamente, sob o céu vermelho.

No caminho de casa, lembrou da imagem da sua mãe no alto da escada. Olhou para o relógio. Eram cinco horas da manhã. Ela, com certeza, estaria acordada. O que dizer?, pensou abrindo a porta da sala com cuidado. Silêncio. Foi até o quarto dela e, estranhamente, a encontrou adormecida com as mãos sujas de tinta. Melhor assim. Descansaria um pouco e enfrentaria esse problema com calma, sem hipocrisia, nem mentiras. Seguiu em direção a seu quarto e viu pendurado, no lugar do espelho, um quadro. Era seu retrato. Estava linda com o vestido vermelho. No lugar do rosto assustado, da noite anterior, um rosto sereno e feliz. Ao lado, um bilhete: Para minha linda menina, Cristal! Ass.: Alma. Ficou parada, imóvel, tomada por grande emoção. Lembrou com carinho da mãe, uma mulher silenciosa, sempre vestida de preto, com o seu eterno avental branco sujo de tinta, e um cheiro suave de manga doce invadiu o quarto. Cristal, que lindo nome!, pensou sorrindo feliz diante do quadro que, agora, refletia sua imagem como um espelho.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Em Pedaços

Cláudia Magalhães


A noite corria doce. As águas do rio lembravam calda de açúcar e as nuvens do céu, tufos de algodão. Ele esperava por seu amor na ponte dos desejos, sentindo-se um novo homem. Cantarolava a sua música preferida, com a felicidade no peito alcançando as notas da loucura, que em seguida, perdiam-se no vento, num vôo belo e insano. Sentia-se livre de todos os erros. Paria a si mesmo e fazia-se anjo. Milagres do amor...
Ela chegou na hora marcada. Era alta, branca, de cabelos pretos e olhos amarelos. Vestia um vestido de algodão com estampa de flores miúdas que lhe ia até os pés. Ele aproximou-se, segurou-lhe a cabeça com as duas mãos e beijou-lhe a testa, o que a fez levar a mão esquerda até os lábios, num gesto de timidez. Ele é tão gentil!, Pensou entregando-lhe a mão. Venha, vamos caminhar um pouco, ele pediu com doçura. Com trinta e poucos anos, sentiu-se uma adolescente. Nunca foi feliz no amor, embora tivesse tido vários relacionamentos. Todos terminaram de forma pacífica, sem grandes traumas, exceto o último, o grande amor da sua vida, mas que a abandonara com violência, deixando-a em pedaços que agiam como se fossem independentes, correndo, se humilhando por uma migalha daquele amor, destruindo a sua essência, reduzindo-a a carne e ossos. Agora, um ano depois, estava ali. Talvez, estivesse sendo muito ousada em se entregar a um estranho daquela forma, afinal, só trocaram algumas poucas palavras quando ele ligou para o seu número por engano. Que importa? Ainda estou doente e nenhuma dor pode ser maior que a minha, pensou tentando afastar a tristeza.
Caminhavam conversando amenidades quando começou a chover fortemente. Ele segurou firme a mão dela, atravessaram o pátio de um parque abandonado e seguiram até uma pequena casinha. Venha, aqui estaremos protegidos da chuva, disse abrindo uma porta velha de madeira. A casinha resumia-se a uma salinha, com uma pequena mesa de madeira e um imenso espelho na parede de entrada, e a um pequeno banheiro.
- Não conhecia esse lugar... - cometou sentindo muito frio.
- Faz, mais ou menos, um ano que esse parque está abandonado. – Falou tirando o enorme casaco e colocando-o sobre a mesa. Aproximou-se dela e olhou-a profundamente por alguns segundos.
- Você quer fazer sexo comigo? – ela perguntou num impulso.
- Eu quero te amar... - respondeu cheio de desejo.
- Sexo sem amor... - baixou os olhos e sorriu com amargura.
- Eu quero a mesma coisa que você. Pode ter certeza, o amor está incluído nisso...
Ele beijou-lhe os dois olhos e a boca. Ele é apenas um estranho, ela pensou tentando controlar o desejo que aumentava violentamente. Fechou os olhos, e através daqueles carinhos, tentou materializar a saudade do amor perdido. Sentiu a temperatura de seu sexo subir rapidamente, acumulando calor, tal qual uma panela de pressão prestes a explodir, a devorar-lhe as carnes com a sua água de fogo, e queimar-lhe os ossos até restar-lhe somente o pó. Ainda com os olhos fechados, ela tirou a roupa revelando as suas carnes brancas. Vem, amor! Nossos corpos foram feitos um para o outro. Vem, logo! Que esse amor está me matando!, Pensou deitando no chão frio, abrindo levemente as pernas. Era-lhe tão grande o desejo que sentiu uma enorme vontade de chorar. Como você é bela!, Ele disse, pensando na imensidão do amor escondido por trás daquela porta, daquela flor em carne. Sentiu o perfume doce do amor invadir a pequena sala. Caiu de joelhos e abocanhou-lhe o sexo. Precisava preparar-lhe o caminho, desenrolando o tapete liquido, sorvendo cada gota daquela água santa para dentro do seu corpo, benzendo-o. No início, com cuidado e carinho, enchendo o ambiente de gemidos baixos, doces, até tornar-se um ato desesperado, cheio de ansiedade. Pare, está doendo!, Ela gritou, causando, nele, grande alteração no espírito. Mordeu-lhe o sexo com força, Ele não poderia escapar, não daquela vez. Ela soltou um grito animal quebrando o silêncio da noite. Em desespero, estendeu o braço direito, pegou um dos seus sapatos e com o salto fino desferiu-lhe vários golpes na cabeça, até conseguir desvencilhar-se e correr para o lado oposto daquele pequeno inferno.
- Louco! Você é um louco!
- Eu amo você! - Disse olhando-a intensamente.
- Eu quero ir embora!
- Não torne as coisas mais difíceis pra mim. Diga que me ama...
- Eu não posso amar você, nos conhecemos há poucas horas.
- Por favor, diga que me ama...
- Eu não amo você! – gritou com desespero.
Nesse momento, ele teve a absoluta certeza. O que ele procurava não estava naquele coração. Tirou uma faca do casaco e enfiou no peito dela. Ela caiu trêmula no chão. Observou-a com cuidado. Ela já não estava mais ali. O esconderijo do amor estava, finalmente, arrebentado. Começou, então, a sua busca, partindo-o, deformando-o. Aonde você está? Na cabeça, nos fazendo perder o juízo, a razão? Na boca, que guarda o céu e cospe obscenidades? Nas mãos, atado em suas linhas tortas? No sexo, que chora no amor e na masturbação? Nos pés, que correm com sede de lama?, Procurou desesperadamente até a exaustão, até entender que ele se escondera num lugar que ele não teria acesso. Ele fugiu da vida. Com a dor, escorregadio e sem forma, entrou no sono dela, e se escondeu em seus sonhos..., pensou, com tristeza. O amor havia surgido em sua vida para, novamente, horas depois, deixar somente carne, sangue e vísceras.
Observou, pela janela, a noite se recolhendo para dormir. Precisava agir antes que amanhecesse. Colocou toda aquela sujeira num saco. Olhou-se no espelho, estava com uma aparência horrível, sujo de sangue e suor. Tomou um banho demorado e vestiu a mesma roupa. Pegou o casaco que ficara sobre a mesa, tomando o cuidado de abotoá-lo por completo, dos joelhos até o pescoço, a fim de esconder as manchas de sangue. Com a mente em branco e com o seu amor em pedaços, retornou a ponte dos desejos e, guiado pelo instinto, jogou o saco no rio. Era a terceira vez, naquele ano, que saía com o Sol, cheio de desejos e sonhos e voltava na madrugada, oco, vazio. Não podia se queixar de solidão. Misturado aos seus inúmeros e bons amigos, logo, logo, estaria recuperado. Seja um bom menino!, Lembrou com carinho das últimas palavras da sua querida mãe antes de sair de casa. Precisava comprar pão fresquinho e preparar-lhe o café. Dormiria, pelo menos, uma hora, em seu colo, antes de ir para o trabalho.
As águas do rio, agora, refletiam o céu em vermelho, destruindo a vaidade de Deus. Tentou cantar. Não conseguiu, a sua língua estava presa no céu , com gosto de sangue. Então, chorou. Os seus olhos deram a sua boca o gosto amargo da vida, o sal que mantém sobre a terra somente a carne e os ossos, mas que é inimigo do amor, que ele tanto amava, mais que qualquer outra pessoa. Agora, precisava dormir. Com a luz do Sol, talvez o encontrasse novamente, então cantaria a sua canção preferida, sonhando com um final feliz.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

A Primeira Mulher de Deus

Cláudia Magalhães


Nas primeiras horas do anoitecer de uma sexta-feira, depois de desejar fortemente fugir daquele maldito lugar, a primeira mulher de Deus sentiu nascer do centro das suas costas, um enorme par de asas negras. Descobriu, então, que a liberdade nasce no centro escuro de todas as coisas, onde moram os desejos mais secretos, nas tocas, nos cárceres, nos lugares fechados, onde a saída não é visível ao olhar humano.
Amava Deus com todas as suas forças. Ele, na sua infinita bondade, dera-lhe a vida, e sentia-lhe uma enorme gratidão por isso. Ensinara-lhe tudo. Falou-lhe da existência do diabo, seu maior inimigo, e do seu enorme poder de sedução. Disse-lhe que ele habitava nas terras além do abismo e, que deixar-se seduzir por ele, só lhe traria grande dor, grande tormento. Inexplicavelmente, a partir desse momento, desejou fortemente conhecê-lo. Condenada a viver isolada naquele lugar chamado Paraíso, pensava, dia e noite, numa maneira de atravessar o abismo e fugir da solidão.
Certa noite, deixou-se cair sobre a terra úmida e ficou contemplando o céu vestido de estrelas. Leve-me com você!, Pensou ao observar uma delas cair. Nesse momento, sentiu o seu corpo elevar-se do chão. Um enorme par de asas negras, úmidas de sangue, nascia em suas costas. Sem raciocinar sobre o ocorrido, sentiu-se carregada para o invisível e, com o coração em febre, alçou vôo pela noite fria, deixando para trás uma chuva rala de sangue. Era a liberdade que se levantava ao vento, que se movia no compasso do seu ventre. Agora, sou eu quem me persigo, pensou, sonhando com um mundo novo, cheio de novas possibilidades. Perdeu-se no deserto. Exausta e com olhar cheio de espanto, viu uma nuvem de poeira tomar a forma de um belo homem. Era ele, o diabo. Ele a olhava de uma maneira que lhe fez gelar os ossos. Estou perdida, pensou desejando fugir dali. Tenho sede, ele falou docemente. Ofereço-te as minhas águas, não para matar a tua sede, mas para roubar a tua calmaria. E, por livre escolha, prendo-me em tuas pernas de fogo, rodeada de respostas. Esta noite, te amarei... Na tua sombra, esconderei os meus medos, aliviarei o meu pranto. Quando a luz nascer, gritarei ao mundo que ressuscitei no gosto das maçãs, respondeu, tentando fugir da solidão. Uniram os seus destinos. Sob o céu aberto, com gosto de vinho, as suas línguas, demoniacamente puras, uniram-se, acendendo fogueiras, penetrando mundos invisíveis, anulando o bem e o mal. Em busca do amor, ela ofereceu-lhe o que tinha de mais sagrado, a sua cruz: a sua boca, o seu sexo e os seus seios. E, nessa cruz, morreu por amor...
Depois de algumas horas, ela acordou. Procurou o seu amor e não o encontrou. As horas de loucuras impensadas deixavam, agora, uma enorme tristeza, um grande vazio no seu coração. Precisava fazer o céu voltar e com ele o seu amor. Procuro aquele que perdi, mas aquele que perdi não me procura, pensou sem desistir da sua busca. Passaram-se meses. Grávida, prestes a dar a luz, ela ainda o procurava. Arrancou-me o coração, os olhos, o sexo! Ávido de sangue, possuiu as minhas carnes e todas as noites, me persegue. Em fuga, o experimentei, e ele nunca mais sairá de mim, porque ferida de amor eu estou!, Pensou mergulhando na loucura.
Nesse imenso vazio, ela trouxe ao mundo o seu filho, o fruto do seu pecado. Em seguida, sentiu-se arrastar, por forças desconhecidas, invisíveis, até uma grande cruz . Nela, com o corpo em chamas, gritou em desespero: Deus, por que faz isso comigo? O amor e o pecado habitam em mim. É esse o meu castigo? O primeiro não me trouxe nada de bom. O segundo, intitulado Satanás, nada mais é que o meu instinto de viver. Por que me criastes imperfeita e com sabedoria? Porque me criastes das fezes, do excremento ao invés do pó puro? Não me livrei da luz, foi ela quem fugiu de mim... Sou feroz no amor como também no ódio. Quando entro numa rixa, não admito insultos. Maldita armadilha! Mesmo que, em minhas sucessivas vidas, queimem a minha anca viva, seguirei em busca do amor... Não tenho saída... Sabes que toda a alma almeja a companhia de outra que lhe complete... Maldito! Trouxestes o amor para o meu espírito feminino e, a partir desse momento, não haverá paz, nem para mim, nem para os homens!...
Nesse momento, o Diabo, observando-a ser consumida pelas chamas, flutuava sobre as águas, refletindo, nelas, a sua outra face, a sua porção divina, a sua imagem de Deus, que satisfeito com a sua criação, sorria, tremendo de felicidade.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Esquina do Mundo - A hora do Cão Lobo

Cláudia Magalhães

Três amigos; Um bar!
Amores, amizade, inveja, traicões...
O acaso rege o destino de homens e mulheres
Na esquina do Paraíso com o Inferno
Onde a hora é sempre dezoito horas
Hora do cão lobo
A esquina do Mundo
Um mundo à beira da tragédia
Regidas não por mãos humanas
Mas pelo incompreensível.


(Trecho da peça teatral "Esquina do Mundo - A hora do Cão Lobo")

Dezoito horas... Esquina do Paraíso com o inferno... Há pouco, o Sol beijou a lua e sob o canto suave da Ave Maria, eles fizeram juras eternas de amor. A Rainha da noite, excessivamente romântica, cheia de saliva, fez amor nos astros e estrelas, deliciou-se na boca do seu amante, virou música, verso, prosa... Ele vai embora. Vazio. Há pouco, ele a pegou por trás e ela sentiu toda a sua paixão escorrer pelo seu sexo, descer até a terra e formar um mar de sangue...
Esse sangue nos revela um prédio de um vermelho extravagante, onde, no térreo, funciona um bar popular, destes encravados nos becos das grandes cidades. De um lado funciona o salão com mesas e cadeiras muito simples, posters de time de futebol e cartazes com dizeres como "Protegido por Deus" e "Fiado só amanhã", do outro lado, separada por um enorme balcão, uma pequena cozinha. Em cima, dois kitnets, um de Rato e o outro de Zé e Ceição. Nos vários sets a vista: Esperança arruma o quarto de Rato e se arruma, incansavelmente; Zé, no seu quarto, bebe e olha fixamente para o relógio de parede; Gardênia cantarola na cozinha, exultante; No salão, Patrícia toma café com bolacha e escuta Rato, que sentado com os pés na lama, canta um chorinho acompanhado por dois boêmios que estão em uma mesa próxima; Teobaldo está sentado no meio da escada observando a lua que brilha incansavelmente no céu, cheia de tristeza, melancolia, poesia, contrastando, e por isso mesmo, enaltecendo a decadência do lugar.

(Salão do bar)


RATO:

Não me condene, não sou vagabundo

Nem tampouco vigarista

Sou um boêmio, um sonhador

Eu tenho alma de artista.

Na mistura do céu e do inferno

Encontrei a esquina do mundo

Da vida, do poeta,

Do doutor, do moribundo.

Aqui ele ri, ele chora,

Toma cana com limão e mel

Toma rum com coca-cola

Com os pés na lama

Olhando para o céu

Desabafa, se esfola

Vai afogando a sua dor.

É a Ribeira dos becos

Da lama, da amargura

Onde tudo e todo sentimento se mistura:

Fé, Cajú,

Sangue, Coentro,

Papa-Figo, Urubu,

Medo, Tormento,

Black-Out, Gentileza,

Virtude, Desalento,

Badalo, Fineza,

Tristeza, Lamento.


Cascudo, História,

Siqueira, Poesia,

Djalma, Vitória,

Navarro, Alegria.


Tributino, Destreza,

Carrapicho, Flores,

Zé Areia, Esperteza,

As Marias, Os Amores.


Coragem, Velocidade,

Loucura, Lambretinha,

Óvni, Verdade,

Nazi, Meladinha.

É do resultado dessa mistura

Que se faz esse lugar.

Venha, amigo, se sentar

Não precisa documento

Basta só ter sentimento

E entre uma alegria e outra

Um pouco de lamento

Porque daqui ninguém sai isento

Sem vontade de chorar!





segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Terra dos sonhos





Cláudia Magalhães


O teu sorriso devorava encantadoramente os meus pensamentos, contrastando e, por isso, enaltecendo, o som melancólico da música Send in the clowns, na voz inconfundível de Carmem MacRae, enquanto eu dirigia embevecida, em direção ao nosso apartamento. Será esse sorriso que ele me dará como grata recompensa quando eu lhe mostrar a grande surpresa da noite: As nossas passagens para a Terra dos Sonhos, Paris! A nossa primeira viagem depois de dois anos de casados. Lá, na terra mágica, ele me fará um filho, Vinícius, ou uma filha, Diadorim... Pensei, deixando-me embriagar, sem rédeas, pelo encanto da tua bela imagem que me guiava. Ah, o teu sorriso... A minha ligação com o divino. Nele, se acham contidas todas as leis do amor, todo o poder dos sentidos... Ele estava tão presente, tão luminoso em meus pensamentos, que não enxerguei o carro a minha frente... Escuro.
Perdi os movimentos do corpo. Deitada numa cama, em tempo integral, passei a viver sob os cuidados de terceiros. Nos três primeiros meses, chorávamos juntos, todas as noites... Um dia, acordei com um suave beijo na testa. Abri os olhos devagar e vi o teu rosto. As mesmas feições, os mesmos gestos, o mesmo nome... Mas não era você! Procurei algo humano em teu olhar, piedade talvez, mas foi um grande vazio que encontrei. Depois de um longo e pesado silêncio, você chorou... E o teu choro confirmou o que eu já sabia... Você lançou um olhar vago pelos arredores do quarto, deu-me as costas e partiu. Tentei gritar, mas a voz me escapava. Incapaz de realizar o menor gesto de espanto e de dor, paralisada, enrijecida, recebi a tua ingratidão e o escárnio do destino. O vazio que você deixou encheu o quarto e tornou-se o meu universo.
Um ano se passou. O meu coração transformou a saudade, o horror do nada, numa aliada esperança. Fazendo uso das sete cores, dá vida ao passado que chega até a mim em forma de sonhos... Sonhos de amor, sonhos de loucura... Entro neles através do teu sorriso. Ele vira o teto do mundo. Derrete a mobília, derruba as paredes do quarto e nos revela a terra dos sonhos... Estamos em Paris... Fazendo amor como quem faz poesia. Rompendo os limites da carne, confundindo as nossas almas, fazemos um filho... E o fim transcende o nada e torna-se começo.
Sei da existência de amores nobres. Eles correm pela vida. Raramente coincidem. Vivem uma série de enganos e morrem com o seu próprio veneno! Estou morta. O meu coração, louco, rejeita a minha condição. Fiel ao seu sentimento, tentando tornar perfeito o imperfeito, alimenta-se de sonhos, das lembranças do gosto das maçãs e, com grande pressa, continua batendo...

quarta-feira, 16 de julho de 2008

O Jantar

Cláudia Magalhães


Minha pequena lua, ele dirá sussurrando ao meu ouvido, sob o som sensual de Guess who, de B.B. King. Alguém, realmente, te ama... Quem será?, perguntarei e ele me responderá com um sorriso tão doce e tão suave quanto o vinho... Interrompendo e excitando o tempo, tão veloz quando encontra a paz, jantaremos a luz de velas... Com a confiança de um amor invisível aos olhos da morte, faremos amor com o céu ao alcance das mãos e comeremos estrelas...
Pensava em como seria maravilhosa aquela noite, enquanto caminhava ansiosa para casa. Comemoraríamos seis anos de casados. Como eu o amo, pensei apertando a aliança entre os dedos. Senti uma forte pontada no peito ao lembrar das ofensas trocadas na noite anterior. Foram juras de ódio eterno em meio a garrafas vazias, copos quebrados e dor, muita dor... Juro pela minha alma que a partir desta noite a minha boca me será fiel. Essa noite, com um delicioso jantar, arroz com frutos do mar, que ele adora, vou agradecê-lo pela dedicação, amor e carinho de todos os dias... Sempre que brigamos, eu faço um jantar especial e rapidamente fazemos as pazes... Sempre foi assim... Trocaremos inúmeras declarações de amor e caminharemos juntos, sem competição, na mesma velocidade, como quem segue a própria imagem num espelho..., pensava enquanto abria a porta do apartamento. Um vento forte e frio interrompeu os meus sonhos. Um cheiro insuportável, de algo ameaçador, me causou um forte calafrio na espinha. Corri a passos largos em direção ao nosso quarto. Abri o guarda-roupa do lado direito. Vazio. O meu corpo foi tomado por uma paralisia horrível. Imóvel, senti o meu coração agitar-se, violento, imenso em meu peito...
Desde esse dia, existe uma eternidade entre os segundos. O tempo é muito lento ao lado do tormento. Sou mais uma vítima que o monstro do amor devorou. Não encontro saída. O meu sangue virou um mar de lágrimas. A minha alma, flutuando sobre ele, ferida, grita a todo instante: Mate-o! Mate esse maldito amor! Sinto uma vontade selvagem de matá-lo, mas quanto maior é a minha vontade, maior é a saudade que sinto do que se foi e do que não vivi...
O que me resta dizer? O meu amor me fez comer estrelas. Hoje, tenho verrugas no coração.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Meia-noite

Cláudia Magalhães


Meia-noite. Desde que você partiu levando o Sol, é sempre meia-noite. Todos os dias, na beira do abismo, entre a carne e a sombra, como os poetas, os bêbados, os loucos, eu te procuro, amor. Você nunca saiu do meu pensamento... Quantas lágrimas... Quanta dor... Não te peço pra voltar. Hoje, não te quero mais. Quando você partiu, amaldiçoei a minha vida. Em desespero, a solidão arrancou a minha língua, mas não calou os meus gritos. Sem suportar o peso da saudade, essa maldita ferida do amor, o meu coração parou de bater. Parado em minhas veias, o meu sangue, louco, fazendo-se de tinta, escorre pelos meus dedos e reinventa a vida sobre o papel. Nessa batalha contra a morte, busco nas palavras, alguma idéia que acalme o meu medo, quase insuportável, de morrer. E escrevendo eu te reencontro, amor... Brincando de ser Deus, crio um mundo onde você não é capaz de me dar adeus, de ir embora. Nesse mundo de milagres, não existe o certo, nem o errado. Encharcado de sangue, suor, saliva e vida, te faço meu herói. Queimo o teu corpo. Em seguida, mergulho as tuas carnes em minhas águas profundas, até você morrer, ressuscitar e, novamente, me ver chorar... Chorar pelo sexo como faz toda mulher diante do amor...
Não! Não precisa voltar! Hoje, aprendi a te amar... Entre o mundo definido e o indefinido, eu te perco e te reencontro, sob o comando da voz louca do meu cérebro que, sem juízo, entrega-se com violência ao que me resta: escrever, escrever, escrever...

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Ele

Cláudia Magalhães


Ele foi, aos poucos, abrindo o seu enorme baú de vergonhas. Vinícius era o seu nome. Conheço-o desde a mais tenra idade. Crescemos juntos. No início, eu o achava destemido, inteligente, ousado, mas, com o passar dos anos, ele foi se revelando um ser repugnante, capaz das piores baixezas para conseguir o que queria. Aos 22 anos, nos formamos em jornalismo e começamos a trabalhar na redação do jornal de um amigo em comum. Apesar dos vexames que ele me causava, não conseguia me afastar dele. Sentia, por Vinícius, medo e fascínio, uma espécie de obsessão. Com o início do trabalho no jornal, vi a adolescência ir embora. Deslocado, no meio daqueles homens mais velhos, eu me refugiava, cada vez mais, em sua companhia. Saíamos todas as noites, depois do trabalho, para beber. Ele foi se afogando, rapidamente, na bebida. Confesso, que sempre senti uma forte atração pelo lado escuro da vida. Mas, depois da falsa alegria, só me restava uma forte depressão. Apesar disso, não saberia o que fazer da minha vida sem Vinícius. Tinha medo da solidão, de ser consumido pela ternura e amor que existiam em mim.
Até que conheci Márcia, meu grande amor. Imediatamente, me afastei do meu amigo e comecei uma vida nova. Ela me devolveu o sono tranqüilo e o dia. Apagou as nuvens cinzas do meu céu e pintou um arco-íris. Ela me trouxe a poesia. Depois de dois meses de namoro, nos casamos. Todas as noites, ela apagava as luzes da nossa pequena varanda e dizia: É na escuridão que melhor enxergamos as estrelas. Mas, existem homens que têm medo do escuro e, principalmente, de céu. Eu era um deles.
Eu e Vinícius, aos poucos, reatamos a nossa amizade. A partir daí, começou o meu inferno. Todas as noites, eu via a minha vida se arrastando de bar em bar e escorrendo pelos copos. Passei a chegar, cada vez mais, tarde em casa, causando tristeza e desgosto à minha amada. A minha vida profissional começou a ruir. Sempre colocando o meu nome em jogo, ele começou a desrespeitar o nosso chefe, a furar as entrevistas marcadas e a chegar bêbado no trabalho. Fomos demitidos. O desgraçado exercia um forte poder sobre mim. Influenciado por ele, virei mais uma vítima da piedade e compaixão das pessoas. A que ponto, meus amigos, um homem pode chegar! Metíamos-nos em brigas, importunávamos as pessoas, lambíamos o chão, impregnando a nossa língua com toda a sujeira do mundo. Até que aconteceu o pior.
Um dia, cheguei em casa e encontrei Márcia sentada na cama, acuada, com o corpo cheio de hematomas. Os seus olhos estavam assustadoramente inchados e o seu lábio inferior tinha um corte profundo. Quando ela me viu o seu rosto perdeu a cor. Disse-me, gritando aos prantos, que ele, o maldito Vinícius, bêbado, entrou no apartamento, feito um louco, dizendo palavras obscenas e movido pelas piores danações do mundo, a violentou. Cão dos infernos! Excremento do mundo! Ah, meus amigos, senti, naquele momento, a dor de mil facadas no peito! Perdi os sentidos. Quando acordei, ela já havia partido. Ela se foi e toda a beleza deixou de existir. Ela levou a pureza e a alegria. Levou a poesia de Shakespeare, o lirismo de Camões e o encanto das músicas. Ela foi embora arrastando o tempo, o perfume e todas as cores. Apagou as linhas das minhas mãos, deixando somente uma enorme tristeza. Ela se foi e, nas primeiras horas de abandono, multipliquei por mil os meus recalques.
Eu queria me vingar! Acabar, definitivamente, com aquele lixo! Reuni todas as minhas forças e fui ao encontro do maldito. Encontrei-o sujo, bêbado, fedido. Levei o canalha para o famoso bar da linha do trem, do outro lado da cidade, conhecido por ser freqüentado por marginais da pior espécie. Estava lotado. Pedimos uma garrafa de cachaça e começamos a beber. Incentivado por mim, não demorou, para o desgraçado arrumar confusão. Falando alto, começou a provocar o sujeito da mesa ao lado.
- O que você está olhando? Quer levar porrada, seu merda?
Imediatamente, o sujeito pegou uma faca e ficou encarando Vinícius.
- Venha, seu corno filho da puta! Covarde! - insistiu.
O sujeito enfiou a faca na barriga dele, que parecia possuído pelo demônio.
-Ah! Ah! Ah! É só isso o que você sabe fazer, seu frouxo?
Foi tão grotesca a reação que o sujeito se intimidou por alguns segundos.
- Ora, pelo amor de Deus! Faça o que tem que fazer, depressa!
Feito um animal selvagem, o sujeito desferiu-lhe várias facadas, Até restar-lhe somente um fiapo de vida.
Apesar da dor, eu mantinha um sorriso de satisfação, de vitória. Com o corpo banhado em sangue, eu agüentava firme. Logo, logo, viria a recompensa. Ali, imóvel, eu aspirava o cheiro da morte. Feito um urubu aguardando carniça, eu vi a vida fugindo de mim em vermelho. A luz foi sumindo aos poucos. É na escuridão que melhor enxergamos as estrelas, pensei. Meu nome, Vinícius. Derrotei o meu maior inimigo: eu!

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Deus e o Diabo


Cláudia Magalhães

Quero deixar bem claro que não estou aqui em busca de compaixão. A minha única intenção é a de compartilhar a minha história com o maior número possível de pessoas, já que, a qualquer momento a vida poderá me cuspir, e sempre que falo sobre o assunto em questão, sinto um grande alívio na alma.
Alguns de vocês podem ficar horrorizados, outros, talvez, admitam para si, que já cometeram algo do gênero em pensamento, e um ou outro, o tenha realizado com a mesma intensidade e o ache bastante natural.
Eu me chamo Carlos. Sempre fui amável, bem-humorado e comunicativo. Uma excelente companhia na roda de amigos. Tive inúmeras namoradas e com todas o relacionamento foi bastante equilibrado. Até que conheci, aos 35 anos, Helena. Aos 34 anos, ela era bela, inteligente e tinha um humor como poucos. Fui tomado por um sentimento monstruoso, forte, que me deixava insuportavelmente feliz. Não demorou para nos casarmos. No início, tudo tranqüilo, mas com o passar dos meses fui ficando cada vez mais inseguro, com fortes crises de ciúmes. Passei a beber compulsivamente. Sentia um ciúme especial por Marcos, um amigo em comum, e que sempre estava presente na roda de amigos. Ele era um empresário bem sucedido, metido a galã, boa conversa. Todas as pessoas o admiravam, inclusive Helena. No bar, ele fazia questão de sentar ao lado dela. Como isso me irritava! E os olhares? Ah... Os olhares que eles trocavam cúmplices, cheios de desejo. O ódio que passei a sentir por ele, é difícil de descrever. Quando nos encontrávamos o meu corpo era tomado por um pavor que me causava espanto. Tentei, juro que tentei, reverter essa situação, me aproximando mais dele. Mas quanto mais agradável e amigo ele era, mais ameaçador ele se tornava para mim. Entrei no inferno. Pensava, em Carlos e Helena se amando, o dia inteiro. Até que, numa terça-feira, não suportando mais essa situação, saí mais cedo do trabalho. Fui direto para o bar. Para minha surpresa, lá estava ele, o meu rival, sozinho numa mesa lendo o jornal do dia. Maldito! O meu corpo todo tremeu, Não sabia se estava com boa ou má sorte. Demônio! Entrou em minha vida pra tentar destruir o meu amor e estava lá, tranqüilo, sereno. Ele sorriu na minha direção. Um sorriso largo, amigo. Canalha! Ele nunca pareceu tão demoníaco quanto nesse momento. Não havia mais ninguém conhecido no bar. Era a minha grande oportunidade. Desliguei o telefone e fui em sua direção. Nunca fui tão agradável, tão simpático como naquele dia. Conversamos sobre futebol, livros, filmes... Enquanto isso, um filme, em especial, ia passando na minha cabeça, onde ele e Helena eram os protagonistas... Filho do cão! Fingindo ser meu amigo com um único objetivo: seduzir Helena, a minha doce Helena! Entrei no jogo pra vencer. Ele só sai daqui embriagado, pensei. Dito e feito. Paguei a conta. Disfarçadamente, peguei uma das facas que serviu para cortar o tira gosto e coloquei dentro do meu casaco. Era pequena, porém pontuda e muito afiada. Serviria para o meu intento. Saímos do bar abraçados. Vou levar você em casa e de lá eu pego um táxi.Onde está o seu carro?, perguntei. Está na rua ao lado, respondeu, me entregando a chave. Era uma rua perfeita, deserta. Entramos no carro. Fechei a porta. Carlos, embriagado, logo adormeceu no banco do passageiro com a cabeça encostada no vidro, deixando o lado esquerdo do pescoço completamente exposto. Me senti Deus naquele momento, ou o Diabo, se preferirem. Qual é mesmo a diferença de um para o outro? Não importa. Eu transpirava muito. Pensei em Helena, meu grande amor... Ela era inocente, eu conhecia bem o seu caráter, era somente uma vítima daquele canalha! Estava decidido. Peguei a faca e mirei na jugular. Quando desferi o golpe ele se mexeu, acertando no seu ombro. Ele acordou assustado. Olhou pra mim com aqueles malditos olhos do inferno. O meu sangue fervia. Estava possesso e deixei os meus instintos me guiarem. Desferi vários golpes, na barriga, no rosto, na perna... Eu sentia prazer enquanto ele gemia de dor. Sinto-me constrangido ao dizer isso, mas não é esse alternar de estado de espírito dos homens, onde uns tem que chorar para que outros possam sorrir, que sustenta a vida? Sim, eu sentia um enorme prazer ao ver o seu espírito se contorcendo, lutando contra a morte. Até que, finalmente, puxei a cabeça dele para trás e desferi o golpe fatal. Pronto. Estava tudo acabado. Estou preso há dois anos. Fui condenado pelo assassinato de um homem que todos consideravam bom, um santo... Ele foi o culpado! Ele estava infernizando a minha vida! Eu não tinha saída. Se algum de nós é Deus ou o Diabo, pouco importa, os dois gostam muito de sangue...
Desde aquele dia, nunca mais vi Helena... A minha doce Helena... Matei um homem pensando em começar uma vida nova ao lado do meu grande amor. Mas, desde aquela noite, o Sol se recusa a nascer.

sábado, 14 de junho de 2008

Pássaro ferido

Cláudia Magalhães


Antes de começar a narrar minha história, darei a mim, o nome de Clara. Não quero manchar o meu nome verdadeiro, nem comprometer a minha família, com os tristes acontecimentos que descreverei a seguir.
Era uma madrugada de sexta-feira, cerca de uma hora, quando decidi violentamente sair de casa, depois de mil ofensas trocadas com o meu marido, que chamarei de Pedro, pelo mesmo motivo acima citado, jurando não mais voltar. Vivíamos uma relação de agonia e êxtase, um sentimento tão forte no amor como no ódio. Prefiro mil vezes o inferno do que viver com a triste lógica desse amor, foram minhas últimas palavras antes de bater a porta do apartamento.
Depois de andar, por horas a fio, sem rumo, levando dentro do peito um sentimento que serve a Deus e ao Diabo, sentei no meio fio de uma rua qualquer e me entreguei a dor de algo, que é grande demais para não ser triste, na esperança de ser salva por um anjo do céu ou do inferno. Buscava a mim mesma. Como todo ser humano, sou feita de vontades, e o meu maior desejo, naquele momento, era o de me entregar às paixões, sem me preocupar aonde elas me conduziriam. Observei a rua deserta, tentando descobrir aonde estava. Era um beco sujo, cheio de lama.
Um pássaro amarelo pousou no meio da rua, enaltecendo ainda mais a crueldade do lugar. Ao vê-lo, me senti tão livre, tão dona das minhas vontades... Fechei os olhos e voei por alguns segundos... Ao abri-los, vi a pequena ave com uma barata no bico e a liberdade que senti cedeu lugar a uma forte náusea. Logo acima, no telhado, um gato preto soltou um grunhido assustador para, em seguida, pular em direção ao pequeno ponto amarelo, abocanhando-o pelo pescoço, até tingi-lo de vermelho. E de telhado em telhado, ganhando mais uma vida, sumiu pelo beco até confundir-se com a escuridão. Nesse instante, escutei o som de pisadas fortes. Um homem grande, forte, vestido de negro, aproximava-se rapidamente de mim. Da sua cabeça saía uma luz incandescente, avermelhada. Senti o meu corpo gelar. Antes que pudesse esboçar qualquer reação, ele puxou com força os meus cabelos e me provando a existência do Diabo, serviu-se do meu corpo. Um espinho entre as minhas pernas me provocou muito frio e muitas dores... Vi a luz fugindo de mim...
Despertei com o barulho de vozes estranhas. Depois de algum tempo, um homem de meia idade, gentilmemte, me levou para casa, para o meu pequeno céu, onde Pedro, o meu anjo, me acolheu com um forte abraço. Ele também sangrava, mas juntos, com ternura e paciência, curamos nossas feridas.
De vez em quando, penso naquele pássaro ferido e nele vejo refletida a imagem da Clara do beco escuro, cheio de lama, uma Clara cheia de orgulho e caprichos, uma Clara que teve as asas quebradas, que naquela noite, virou somente um ferimento aberto, fétido, escorrendo pus. Ela foi morrendo com o tempo, e depois de morta virou santa. Ainda tenho muitos becos escuros a percorrer. Meu sangue tem muito de lama. Ela sabe disso e do seu altar, hoje, opera em mim grandes milagres.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Terra de Sant'Ana

Ao lado: Capa do livro
Trecho do espetáculo - 2007
Texto: Cláudia Magalhães


Os seus soldados, os seus sete demônios,
Uniram-se com uma só intenção.
Com a mão direita acariciaram-lhe a carne
Dominaram o seu juízo, a sua razão.
Depois, com a mão esquerda,
Secaram o seu bucho de sertão
Arrancaram-lhe os dentes, cortaram-lhe os cabelos,
E dos seus lábios saiu um perdão.
Ele caiu no precipício, virou pedrinha miudinha.
Sumiram do céu as nuvens de algodão
O minério virou poeira na sua mão
A carne virou terra, o leite virou pedra,
O fogo do inferno rachou, trincou o chão.
O sol virou o olho negro do diabo
O vento fugiu com as cores do sertão.
E nesse cenário preto e branco
O sertanejo com um só coração
E duas cabeças: A fé e a loucura.
Uma olhando pro céu...
A outra pro chão...
Escutava o silêncio e as respostas que ele dá.

A Carta

Cláudia Magalhães


O relógio da parede marca as primeiras horas do anoitecer de uma sexta-feira. O silêncio escuta com paciência as batidas descompassadas do coração de Dona Alma, que sentada à pequena mesinha redonda do terraço fracamente iluminado, observa atentamente a rua comprida que segue ladeira abaixo. São fortes, as lembranças do passado. Sente uma saudade tão assustadora e, ao mesmo tempo, tão infinitamente sedutora, que é impossível rejeitá-la. Há um ano, um amor que era tudo na sua vida, foi embora, deixando o seu coração cheio de agonia. Desde então, dorme e faz as refeições na pequena varanda. Ele pode voltar a qualquer momento, pensa. Abre o bloco grande de papel e começa a escrever.
Meu querido, porque sumir por tanto tempo? Se te magoei por algum motivo, peço-te novamente perdão e milhões de vezes te pedirei se assim necessário for. Volta, amor... A saudade já roubou os meus sonhos e insiste em me deixar com uma aparência doentia... Tenho na garganta uma pedra deixando os meus olhos cobertos de areia, o que justifica tantas lágrimas... tanta chuva... Ela desceu até o meu sexo e matou a minha flor. O peso é insuportável, por isso são poucos os meus movimentos. O meu coração continua acordado. A dor ajudou a mostrar o seu valor . Ele continua forte, embora apresente sinais de loucura... Volta, que o meu Deus está triste porque dia e noite eu jogo a minha ira sobre ele... É grande a espera, mas vale a pena, pois espero a coisa mais linda do mundo... Volta, meu arco-íris...Volta, que tenho algo a te dizer, algo que, talvez, já tenha dito antes, mas que, agora, é de vital importância pra mim, pois só assim, darei um fim a minha dor.
Escuta o barulho do arrastar das sandálias de Pretinha, sua empregada. Dobra a carta com cuidado, a coloca dentro de um envelope, e em seguida, cola uma fitinha cor-de-rosa. No verso, escreve com letra miúda o nome do marido. Pretinha chega com as sobras do almoço.
- Está na hora do seu jantar.
- Pegue essa carta Pretinha, coloque-a no correio. De hoje, não passa.
- Pelo amor de Deus, Dona Alma! Aceite a realidade, o seu Manoel morreu! Morreu, entende? – esbravejou Pretinha – Há um ano, que a senhora, todos os dias, escreve essas malditas cartas e todos os dias eu as jogo no lixo!
Neste instante, Dona Alma vê o seu marido subindo a velha rua estreita com sua camisa branca de linho, sua calça de micro-fibra, a preferida em tempos de calor, e o seu eterno chapéu Panamá. Corre até o portão, e com as mãos na cabeça, grita:
- Manoel! Manoel!
Ele voltou, e seria loucura duvidar. Cai de joelhos agradecendo ao céu, agradecendo a vida dedicada ao amor fiel e nobre, as tristezas e alegrias compartilhadas, agradecendo a rua, bendita rua, que com a ajuda de pisadas retas ou tortas guarda em suas frestas a sua linda história de amor... Dona Alma vê Manoel se aproximar sorrindo. Ele atravessa o portão, lhe estende com serenidade a mão, e diz:
- Vamos, querida! Você precisa descansar...
Deixa-se abraçar feliz. Observa Pretinha a olhando apreensiva, curiosa.
- Pretinha, obrigada por tudo – sussurrou, aproximando-se da amiga.
- Está tudo bem com a senhora? Eu não queria...
- Pode ir em paz, minha querida. Eu vou deitar no meu quarto, na minha cama... Preciso dormir... - Segue o marido em direção ao interior da casa.
Pretinha sorri. Finalmente Dona Alma havia compreendido a situação. Pega a sua bolsa, fecha a porta com a sua chave e, pela primeira vez, nesse último ano, vai para casa aliviada. Quem sabe, encarando a realidade, ela recomeça a sua vida, uma vida nova!, pensa com carinho.
Dona Alma deita feliz ao lado de Manoel, o seu amor. Deita procurando a vida desejada. Deita para nunca mais acordar.

Paraíso perdido


Cláudia Magalhães


Um velho sobrado com paredes e teto de vidro. Ao redor, árvores altas, frondosas, em meio a inúmeras folhas secas que completam o cenário sépia, banhado pela luz da lua e do Sol que se despede deixando no ar uma aura de tristeza, de melancolia.
Ao adentrarmos no teto de vidro, observamos uma mulher, Dolores. Os seus olhos olham fixamente para o homem com os pulsos cortados, sentado numa velha poltrona a seu lado. Pedro, seu grande amor. Ele foi embora, deixando um olhar sereno, doce. O amor dorme ao sabor dos ventos e seguindo os caprichos de Deus ou do Diabo ele pode dormir no céu e acordar no inferno, ela pensa, imóvel, sentada sobre o chão frio. Nenhuma lágrima. A dor velha, agora, flutua de mãos dadas com a loucura e sente-se feliz. Seus olhos cansados comprovam as inúmeras noites em claro em que andou pela casa como uma morta viva. Desvia o olhar e observa sobre a mesa, o pequeno aquário, que ganhou no início do relacionamento, com dois peixinhos, um azul e um vermelho. Eles são parecidos conosco: o azul é você, tranqüilo... e o vermelho sou eu, afogueada, acelerada.... disse, certa vez, com alegria. Eles se amavam demais. Era um amor forte, belo, verdadeiro... O paraíso. Fugiam de tudo e de todos, eles se bastavam. Caminhavam sempre juntos, ela com o pé direito sobre o pé esquerdo dele. Comiam do mesmo prato, bebiam do mesmo copo... O amor perfeito... Perfeito demais...
Até que veio o medo quase incontrolável da perda e passaram a cobrar provas constantes de amor, no início controláveis, depois perderam o freio. O amor estava ameaçado... Descobriram o inferno... A casa perdeu o perfume, ficou fétida, as paredes mofadas de lágrimas virou um ninho de vermes. Os pés, que antes flutuavam em perfeita sintonia, agora, andavam grudados no chão com suor e saliva onde se arrastavam cobras com línguas afiadas e gargalhadas alucinantes... Deitavam, todas as noites, com as mãos entrelaçadas sobre o peito, feito cadáveres. Adormeciam e acordavam na mesma posição. Dormiam a noite inteira e amanheciam com olheiras... Não tinham sonhos.. Até que passaram a não dormir mais...
Dolores aproxima-se de Pedro, segura o seu pulso esquerdo com as mãos, leva-o até a boca... Como é doce, pensa. Fecha os olhos e lembra dos últimos momentos com o seu amor:
- Antes de você, eu só fazia envelhecer. Você trouxe a vida e a partir desse momento eu só desejei a morte. Você entrou por uma porta que eu não sabia existir. Vi o teu amor se aproximar e entrar em mim com a ternura de uma lâmina afiada. Sangrei e chorei. Quanto mais aumentava a tua doçura, mais eu me cortava. Quanto mais eu sangrava, mais eu te amava. Queríamos o céu e entramos no inferno. Cortamos os pés com os restos de nossas vidas e nos mutilamos com as nossas mãos de céu... – ela disse com tristeza - Estamos diante do abismo, em busca da morte...
Silêncio.

- É o que você quer? – ele falou com ternura.
- É o que eu mais desejo.

Ele se levanta num impulso violento. Com passos largos, segue em direção ao armário da cozinha e retira de uma das gavetas uma faca. Ela o observa com as feições e a postura de quem ama demais, característica essencial para as maiores desgraças. Ele volta à sala e corta, sem titubear, os pulsos. Ela sorri agradecida.

- Eu te amo, Dolores... Acredita em mim?
- Sim, eu acredito...

Ele se foi provando o seu amor. Sentia-se, novamente, feliz e amada. Ela levanta, segue em direção ao velho baú e retira uma corda. Volta à sala e com a ajuda de uma cadeira, prende-a num lastro de madeira do teto. Vê o seu corpo tingir-se de vermelho. Enlaça a corda no pescoço e joga-se no abismo como quem deseja voar... Sente o coração acelerado livrar-se das dores e das saudades... Nada mais importa, os peixes do aquário estão mortos.