segunda-feira, 30 de junho de 2008

Ele

Cláudia Magalhães


Ele foi, aos poucos, abrindo o seu enorme baú de vergonhas. Vinícius era o seu nome. Conheço-o desde a mais tenra idade. Crescemos juntos. No início, eu o achava destemido, inteligente, ousado, mas, com o passar dos anos, ele foi se revelando um ser repugnante, capaz das piores baixezas para conseguir o que queria. Aos 22 anos, nos formamos em jornalismo e começamos a trabalhar na redação do jornal de um amigo em comum. Apesar dos vexames que ele me causava, não conseguia me afastar dele. Sentia, por Vinícius, medo e fascínio, uma espécie de obsessão. Com o início do trabalho no jornal, vi a adolescência ir embora. Deslocado, no meio daqueles homens mais velhos, eu me refugiava, cada vez mais, em sua companhia. Saíamos todas as noites, depois do trabalho, para beber. Ele foi se afogando, rapidamente, na bebida. Confesso, que sempre senti uma forte atração pelo lado escuro da vida. Mas, depois da falsa alegria, só me restava uma forte depressão. Apesar disso, não saberia o que fazer da minha vida sem Vinícius. Tinha medo da solidão, de ser consumido pela ternura e amor que existiam em mim.
Até que conheci Márcia, meu grande amor. Imediatamente, me afastei do meu amigo e comecei uma vida nova. Ela me devolveu o sono tranqüilo e o dia. Apagou as nuvens cinzas do meu céu e pintou um arco-íris. Ela me trouxe a poesia. Depois de dois meses de namoro, nos casamos. Todas as noites, ela apagava as luzes da nossa pequena varanda e dizia: É na escuridão que melhor enxergamos as estrelas. Mas, existem homens que têm medo do escuro e, principalmente, de céu. Eu era um deles.
Eu e Vinícius, aos poucos, reatamos a nossa amizade. A partir daí, começou o meu inferno. Todas as noites, eu via a minha vida se arrastando de bar em bar e escorrendo pelos copos. Passei a chegar, cada vez mais, tarde em casa, causando tristeza e desgosto à minha amada. A minha vida profissional começou a ruir. Sempre colocando o meu nome em jogo, ele começou a desrespeitar o nosso chefe, a furar as entrevistas marcadas e a chegar bêbado no trabalho. Fomos demitidos. O desgraçado exercia um forte poder sobre mim. Influenciado por ele, virei mais uma vítima da piedade e compaixão das pessoas. A que ponto, meus amigos, um homem pode chegar! Metíamos-nos em brigas, importunávamos as pessoas, lambíamos o chão, impregnando a nossa língua com toda a sujeira do mundo. Até que aconteceu o pior.
Um dia, cheguei em casa e encontrei Márcia sentada na cama, acuada, com o corpo cheio de hematomas. Os seus olhos estavam assustadoramente inchados e o seu lábio inferior tinha um corte profundo. Quando ela me viu o seu rosto perdeu a cor. Disse-me, gritando aos prantos, que ele, o maldito Vinícius, bêbado, entrou no apartamento, feito um louco, dizendo palavras obscenas e movido pelas piores danações do mundo, a violentou. Cão dos infernos! Excremento do mundo! Ah, meus amigos, senti, naquele momento, a dor de mil facadas no peito! Perdi os sentidos. Quando acordei, ela já havia partido. Ela se foi e toda a beleza deixou de existir. Ela levou a pureza e a alegria. Levou a poesia de Shakespeare, o lirismo de Camões e o encanto das músicas. Ela foi embora arrastando o tempo, o perfume e todas as cores. Apagou as linhas das minhas mãos, deixando somente uma enorme tristeza. Ela se foi e, nas primeiras horas de abandono, multipliquei por mil os meus recalques.
Eu queria me vingar! Acabar, definitivamente, com aquele lixo! Reuni todas as minhas forças e fui ao encontro do maldito. Encontrei-o sujo, bêbado, fedido. Levei o canalha para o famoso bar da linha do trem, do outro lado da cidade, conhecido por ser freqüentado por marginais da pior espécie. Estava lotado. Pedimos uma garrafa de cachaça e começamos a beber. Incentivado por mim, não demorou, para o desgraçado arrumar confusão. Falando alto, começou a provocar o sujeito da mesa ao lado.
- O que você está olhando? Quer levar porrada, seu merda?
Imediatamente, o sujeito pegou uma faca e ficou encarando Vinícius.
- Venha, seu corno filho da puta! Covarde! - insistiu.
O sujeito enfiou a faca na barriga dele, que parecia possuído pelo demônio.
-Ah! Ah! Ah! É só isso o que você sabe fazer, seu frouxo?
Foi tão grotesca a reação que o sujeito se intimidou por alguns segundos.
- Ora, pelo amor de Deus! Faça o que tem que fazer, depressa!
Feito um animal selvagem, o sujeito desferiu-lhe várias facadas, Até restar-lhe somente um fiapo de vida.
Apesar da dor, eu mantinha um sorriso de satisfação, de vitória. Com o corpo banhado em sangue, eu agüentava firme. Logo, logo, viria a recompensa. Ali, imóvel, eu aspirava o cheiro da morte. Feito um urubu aguardando carniça, eu vi a vida fugindo de mim em vermelho. A luz foi sumindo aos poucos. É na escuridão que melhor enxergamos as estrelas, pensei. Meu nome, Vinícius. Derrotei o meu maior inimigo: eu!

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Deus e o Diabo


Cláudia Magalhães

Quero deixar bem claro que não estou aqui em busca de compaixão. A minha única intenção é a de compartilhar a minha história com o maior número possível de pessoas, já que, a qualquer momento a vida poderá me cuspir, e sempre que falo sobre o assunto em questão, sinto um grande alívio na alma.
Alguns de vocês podem ficar horrorizados, outros, talvez, admitam para si, que já cometeram algo do gênero em pensamento, e um ou outro, o tenha realizado com a mesma intensidade e o ache bastante natural.
Eu me chamo Carlos. Sempre fui amável, bem-humorado e comunicativo. Uma excelente companhia na roda de amigos. Tive inúmeras namoradas e com todas o relacionamento foi bastante equilibrado. Até que conheci, aos 35 anos, Helena. Aos 34 anos, ela era bela, inteligente e tinha um humor como poucos. Fui tomado por um sentimento monstruoso, forte, que me deixava insuportavelmente feliz. Não demorou para nos casarmos. No início, tudo tranqüilo, mas com o passar dos meses fui ficando cada vez mais inseguro, com fortes crises de ciúmes. Passei a beber compulsivamente. Sentia um ciúme especial por Marcos, um amigo em comum, e que sempre estava presente na roda de amigos. Ele era um empresário bem sucedido, metido a galã, boa conversa. Todas as pessoas o admiravam, inclusive Helena. No bar, ele fazia questão de sentar ao lado dela. Como isso me irritava! E os olhares? Ah... Os olhares que eles trocavam cúmplices, cheios de desejo. O ódio que passei a sentir por ele, é difícil de descrever. Quando nos encontrávamos o meu corpo era tomado por um pavor que me causava espanto. Tentei, juro que tentei, reverter essa situação, me aproximando mais dele. Mas quanto mais agradável e amigo ele era, mais ameaçador ele se tornava para mim. Entrei no inferno. Pensava, em Carlos e Helena se amando, o dia inteiro. Até que, numa terça-feira, não suportando mais essa situação, saí mais cedo do trabalho. Fui direto para o bar. Para minha surpresa, lá estava ele, o meu rival, sozinho numa mesa lendo o jornal do dia. Maldito! O meu corpo todo tremeu, Não sabia se estava com boa ou má sorte. Demônio! Entrou em minha vida pra tentar destruir o meu amor e estava lá, tranqüilo, sereno. Ele sorriu na minha direção. Um sorriso largo, amigo. Canalha! Ele nunca pareceu tão demoníaco quanto nesse momento. Não havia mais ninguém conhecido no bar. Era a minha grande oportunidade. Desliguei o telefone e fui em sua direção. Nunca fui tão agradável, tão simpático como naquele dia. Conversamos sobre futebol, livros, filmes... Enquanto isso, um filme, em especial, ia passando na minha cabeça, onde ele e Helena eram os protagonistas... Filho do cão! Fingindo ser meu amigo com um único objetivo: seduzir Helena, a minha doce Helena! Entrei no jogo pra vencer. Ele só sai daqui embriagado, pensei. Dito e feito. Paguei a conta. Disfarçadamente, peguei uma das facas que serviu para cortar o tira gosto e coloquei dentro do meu casaco. Era pequena, porém pontuda e muito afiada. Serviria para o meu intento. Saímos do bar abraçados. Vou levar você em casa e de lá eu pego um táxi.Onde está o seu carro?, perguntei. Está na rua ao lado, respondeu, me entregando a chave. Era uma rua perfeita, deserta. Entramos no carro. Fechei a porta. Carlos, embriagado, logo adormeceu no banco do passageiro com a cabeça encostada no vidro, deixando o lado esquerdo do pescoço completamente exposto. Me senti Deus naquele momento, ou o Diabo, se preferirem. Qual é mesmo a diferença de um para o outro? Não importa. Eu transpirava muito. Pensei em Helena, meu grande amor... Ela era inocente, eu conhecia bem o seu caráter, era somente uma vítima daquele canalha! Estava decidido. Peguei a faca e mirei na jugular. Quando desferi o golpe ele se mexeu, acertando no seu ombro. Ele acordou assustado. Olhou pra mim com aqueles malditos olhos do inferno. O meu sangue fervia. Estava possesso e deixei os meus instintos me guiarem. Desferi vários golpes, na barriga, no rosto, na perna... Eu sentia prazer enquanto ele gemia de dor. Sinto-me constrangido ao dizer isso, mas não é esse alternar de estado de espírito dos homens, onde uns tem que chorar para que outros possam sorrir, que sustenta a vida? Sim, eu sentia um enorme prazer ao ver o seu espírito se contorcendo, lutando contra a morte. Até que, finalmente, puxei a cabeça dele para trás e desferi o golpe fatal. Pronto. Estava tudo acabado. Estou preso há dois anos. Fui condenado pelo assassinato de um homem que todos consideravam bom, um santo... Ele foi o culpado! Ele estava infernizando a minha vida! Eu não tinha saída. Se algum de nós é Deus ou o Diabo, pouco importa, os dois gostam muito de sangue...
Desde aquele dia, nunca mais vi Helena... A minha doce Helena... Matei um homem pensando em começar uma vida nova ao lado do meu grande amor. Mas, desde aquela noite, o Sol se recusa a nascer.

sábado, 14 de junho de 2008

Pássaro ferido

Cláudia Magalhães


Antes de começar a narrar minha história, darei a mim, o nome de Clara. Não quero manchar o meu nome verdadeiro, nem comprometer a minha família, com os tristes acontecimentos que descreverei a seguir.
Era uma madrugada de sexta-feira, cerca de uma hora, quando decidi violentamente sair de casa, depois de mil ofensas trocadas com o meu marido, que chamarei de Pedro, pelo mesmo motivo acima citado, jurando não mais voltar. Vivíamos uma relação de agonia e êxtase, um sentimento tão forte no amor como no ódio. Prefiro mil vezes o inferno do que viver com a triste lógica desse amor, foram minhas últimas palavras antes de bater a porta do apartamento.
Depois de andar, por horas a fio, sem rumo, levando dentro do peito um sentimento que serve a Deus e ao Diabo, sentei no meio fio de uma rua qualquer e me entreguei a dor de algo, que é grande demais para não ser triste, na esperança de ser salva por um anjo do céu ou do inferno. Buscava a mim mesma. Como todo ser humano, sou feita de vontades, e o meu maior desejo, naquele momento, era o de me entregar às paixões, sem me preocupar aonde elas me conduziriam. Observei a rua deserta, tentando descobrir aonde estava. Era um beco sujo, cheio de lama.
Um pássaro amarelo pousou no meio da rua, enaltecendo ainda mais a crueldade do lugar. Ao vê-lo, me senti tão livre, tão dona das minhas vontades... Fechei os olhos e voei por alguns segundos... Ao abri-los, vi a pequena ave com uma barata no bico e a liberdade que senti cedeu lugar a uma forte náusea. Logo acima, no telhado, um gato preto soltou um grunhido assustador para, em seguida, pular em direção ao pequeno ponto amarelo, abocanhando-o pelo pescoço, até tingi-lo de vermelho. E de telhado em telhado, ganhando mais uma vida, sumiu pelo beco até confundir-se com a escuridão. Nesse instante, escutei o som de pisadas fortes. Um homem grande, forte, vestido de negro, aproximava-se rapidamente de mim. Da sua cabeça saía uma luz incandescente, avermelhada. Senti o meu corpo gelar. Antes que pudesse esboçar qualquer reação, ele puxou com força os meus cabelos e me provando a existência do Diabo, serviu-se do meu corpo. Um espinho entre as minhas pernas me provocou muito frio e muitas dores... Vi a luz fugindo de mim...
Despertei com o barulho de vozes estranhas. Depois de algum tempo, um homem de meia idade, gentilmemte, me levou para casa, para o meu pequeno céu, onde Pedro, o meu anjo, me acolheu com um forte abraço. Ele também sangrava, mas juntos, com ternura e paciência, curamos nossas feridas.
De vez em quando, penso naquele pássaro ferido e nele vejo refletida a imagem da Clara do beco escuro, cheio de lama, uma Clara cheia de orgulho e caprichos, uma Clara que teve as asas quebradas, que naquela noite, virou somente um ferimento aberto, fétido, escorrendo pus. Ela foi morrendo com o tempo, e depois de morta virou santa. Ainda tenho muitos becos escuros a percorrer. Meu sangue tem muito de lama. Ela sabe disso e do seu altar, hoje, opera em mim grandes milagres.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Terra de Sant'Ana

Ao lado: Capa do livro
Trecho do espetáculo - 2007
Texto: Cláudia Magalhães


Os seus soldados, os seus sete demônios,
Uniram-se com uma só intenção.
Com a mão direita acariciaram-lhe a carne
Dominaram o seu juízo, a sua razão.
Depois, com a mão esquerda,
Secaram o seu bucho de sertão
Arrancaram-lhe os dentes, cortaram-lhe os cabelos,
E dos seus lábios saiu um perdão.
Ele caiu no precipício, virou pedrinha miudinha.
Sumiram do céu as nuvens de algodão
O minério virou poeira na sua mão
A carne virou terra, o leite virou pedra,
O fogo do inferno rachou, trincou o chão.
O sol virou o olho negro do diabo
O vento fugiu com as cores do sertão.
E nesse cenário preto e branco
O sertanejo com um só coração
E duas cabeças: A fé e a loucura.
Uma olhando pro céu...
A outra pro chão...
Escutava o silêncio e as respostas que ele dá.

A Carta

Cláudia Magalhães


O relógio da parede marca as primeiras horas do anoitecer de uma sexta-feira. O silêncio escuta com paciência as batidas descompassadas do coração de Dona Alma, que sentada à pequena mesinha redonda do terraço fracamente iluminado, observa atentamente a rua comprida que segue ladeira abaixo. São fortes, as lembranças do passado. Sente uma saudade tão assustadora e, ao mesmo tempo, tão infinitamente sedutora, que é impossível rejeitá-la. Há um ano, um amor que era tudo na sua vida, foi embora, deixando o seu coração cheio de agonia. Desde então, dorme e faz as refeições na pequena varanda. Ele pode voltar a qualquer momento, pensa. Abre o bloco grande de papel e começa a escrever.
Meu querido, porque sumir por tanto tempo? Se te magoei por algum motivo, peço-te novamente perdão e milhões de vezes te pedirei se assim necessário for. Volta, amor... A saudade já roubou os meus sonhos e insiste em me deixar com uma aparência doentia... Tenho na garganta uma pedra deixando os meus olhos cobertos de areia, o que justifica tantas lágrimas... tanta chuva... Ela desceu até o meu sexo e matou a minha flor. O peso é insuportável, por isso são poucos os meus movimentos. O meu coração continua acordado. A dor ajudou a mostrar o seu valor . Ele continua forte, embora apresente sinais de loucura... Volta, que o meu Deus está triste porque dia e noite eu jogo a minha ira sobre ele... É grande a espera, mas vale a pena, pois espero a coisa mais linda do mundo... Volta, meu arco-íris...Volta, que tenho algo a te dizer, algo que, talvez, já tenha dito antes, mas que, agora, é de vital importância pra mim, pois só assim, darei um fim a minha dor.
Escuta o barulho do arrastar das sandálias de Pretinha, sua empregada. Dobra a carta com cuidado, a coloca dentro de um envelope, e em seguida, cola uma fitinha cor-de-rosa. No verso, escreve com letra miúda o nome do marido. Pretinha chega com as sobras do almoço.
- Está na hora do seu jantar.
- Pegue essa carta Pretinha, coloque-a no correio. De hoje, não passa.
- Pelo amor de Deus, Dona Alma! Aceite a realidade, o seu Manoel morreu! Morreu, entende? – esbravejou Pretinha – Há um ano, que a senhora, todos os dias, escreve essas malditas cartas e todos os dias eu as jogo no lixo!
Neste instante, Dona Alma vê o seu marido subindo a velha rua estreita com sua camisa branca de linho, sua calça de micro-fibra, a preferida em tempos de calor, e o seu eterno chapéu Panamá. Corre até o portão, e com as mãos na cabeça, grita:
- Manoel! Manoel!
Ele voltou, e seria loucura duvidar. Cai de joelhos agradecendo ao céu, agradecendo a vida dedicada ao amor fiel e nobre, as tristezas e alegrias compartilhadas, agradecendo a rua, bendita rua, que com a ajuda de pisadas retas ou tortas guarda em suas frestas a sua linda história de amor... Dona Alma vê Manoel se aproximar sorrindo. Ele atravessa o portão, lhe estende com serenidade a mão, e diz:
- Vamos, querida! Você precisa descansar...
Deixa-se abraçar feliz. Observa Pretinha a olhando apreensiva, curiosa.
- Pretinha, obrigada por tudo – sussurrou, aproximando-se da amiga.
- Está tudo bem com a senhora? Eu não queria...
- Pode ir em paz, minha querida. Eu vou deitar no meu quarto, na minha cama... Preciso dormir... - Segue o marido em direção ao interior da casa.
Pretinha sorri. Finalmente Dona Alma havia compreendido a situação. Pega a sua bolsa, fecha a porta com a sua chave e, pela primeira vez, nesse último ano, vai para casa aliviada. Quem sabe, encarando a realidade, ela recomeça a sua vida, uma vida nova!, pensa com carinho.
Dona Alma deita feliz ao lado de Manoel, o seu amor. Deita procurando a vida desejada. Deita para nunca mais acordar.

Paraíso perdido


Cláudia Magalhães


Um velho sobrado com paredes e teto de vidro. Ao redor, árvores altas, frondosas, em meio a inúmeras folhas secas que completam o cenário sépia, banhado pela luz da lua e do Sol que se despede deixando no ar uma aura de tristeza, de melancolia.
Ao adentrarmos no teto de vidro, observamos uma mulher, Dolores. Os seus olhos olham fixamente para o homem com os pulsos cortados, sentado numa velha poltrona a seu lado. Pedro, seu grande amor. Ele foi embora, deixando um olhar sereno, doce. O amor dorme ao sabor dos ventos e seguindo os caprichos de Deus ou do Diabo ele pode dormir no céu e acordar no inferno, ela pensa, imóvel, sentada sobre o chão frio. Nenhuma lágrima. A dor velha, agora, flutua de mãos dadas com a loucura e sente-se feliz. Seus olhos cansados comprovam as inúmeras noites em claro em que andou pela casa como uma morta viva. Desvia o olhar e observa sobre a mesa, o pequeno aquário, que ganhou no início do relacionamento, com dois peixinhos, um azul e um vermelho. Eles são parecidos conosco: o azul é você, tranqüilo... e o vermelho sou eu, afogueada, acelerada.... disse, certa vez, com alegria. Eles se amavam demais. Era um amor forte, belo, verdadeiro... O paraíso. Fugiam de tudo e de todos, eles se bastavam. Caminhavam sempre juntos, ela com o pé direito sobre o pé esquerdo dele. Comiam do mesmo prato, bebiam do mesmo copo... O amor perfeito... Perfeito demais...
Até que veio o medo quase incontrolável da perda e passaram a cobrar provas constantes de amor, no início controláveis, depois perderam o freio. O amor estava ameaçado... Descobriram o inferno... A casa perdeu o perfume, ficou fétida, as paredes mofadas de lágrimas virou um ninho de vermes. Os pés, que antes flutuavam em perfeita sintonia, agora, andavam grudados no chão com suor e saliva onde se arrastavam cobras com línguas afiadas e gargalhadas alucinantes... Deitavam, todas as noites, com as mãos entrelaçadas sobre o peito, feito cadáveres. Adormeciam e acordavam na mesma posição. Dormiam a noite inteira e amanheciam com olheiras... Não tinham sonhos.. Até que passaram a não dormir mais...
Dolores aproxima-se de Pedro, segura o seu pulso esquerdo com as mãos, leva-o até a boca... Como é doce, pensa. Fecha os olhos e lembra dos últimos momentos com o seu amor:
- Antes de você, eu só fazia envelhecer. Você trouxe a vida e a partir desse momento eu só desejei a morte. Você entrou por uma porta que eu não sabia existir. Vi o teu amor se aproximar e entrar em mim com a ternura de uma lâmina afiada. Sangrei e chorei. Quanto mais aumentava a tua doçura, mais eu me cortava. Quanto mais eu sangrava, mais eu te amava. Queríamos o céu e entramos no inferno. Cortamos os pés com os restos de nossas vidas e nos mutilamos com as nossas mãos de céu... – ela disse com tristeza - Estamos diante do abismo, em busca da morte...
Silêncio.

- É o que você quer? – ele falou com ternura.
- É o que eu mais desejo.

Ele se levanta num impulso violento. Com passos largos, segue em direção ao armário da cozinha e retira de uma das gavetas uma faca. Ela o observa com as feições e a postura de quem ama demais, característica essencial para as maiores desgraças. Ele volta à sala e corta, sem titubear, os pulsos. Ela sorri agradecida.

- Eu te amo, Dolores... Acredita em mim?
- Sim, eu acredito...

Ele se foi provando o seu amor. Sentia-se, novamente, feliz e amada. Ela levanta, segue em direção ao velho baú e retira uma corda. Volta à sala e com a ajuda de uma cadeira, prende-a num lastro de madeira do teto. Vê o seu corpo tingir-se de vermelho. Enlaça a corda no pescoço e joga-se no abismo como quem deseja voar... Sente o coração acelerado livrar-se das dores e das saudades... Nada mais importa, os peixes do aquário estão mortos.