segunda-feira, 18 de agosto de 2008

A Primeira Mulher de Deus

Cláudia Magalhães


Nas primeiras horas do anoitecer de uma sexta-feira, depois de desejar fortemente fugir daquele maldito lugar, a primeira mulher de Deus sentiu nascer do centro das suas costas, um enorme par de asas negras. Descobriu, então, que a liberdade nasce no centro escuro de todas as coisas, onde moram os desejos mais secretos, nas tocas, nos cárceres, nos lugares fechados, onde a saída não é visível ao olhar humano.
Amava Deus com todas as suas forças. Ele, na sua infinita bondade, dera-lhe a vida, e sentia-lhe uma enorme gratidão por isso. Ensinara-lhe tudo. Falou-lhe da existência do diabo, seu maior inimigo, e do seu enorme poder de sedução. Disse-lhe que ele habitava nas terras além do abismo e, que deixar-se seduzir por ele, só lhe traria grande dor, grande tormento. Inexplicavelmente, a partir desse momento, desejou fortemente conhecê-lo. Condenada a viver isolada naquele lugar chamado Paraíso, pensava, dia e noite, numa maneira de atravessar o abismo e fugir da solidão.
Certa noite, deixou-se cair sobre a terra úmida e ficou contemplando o céu vestido de estrelas. Leve-me com você!, Pensou ao observar uma delas cair. Nesse momento, sentiu o seu corpo elevar-se do chão. Um enorme par de asas negras, úmidas de sangue, nascia em suas costas. Sem raciocinar sobre o ocorrido, sentiu-se carregada para o invisível e, com o coração em febre, alçou vôo pela noite fria, deixando para trás uma chuva rala de sangue. Era a liberdade que se levantava ao vento, que se movia no compasso do seu ventre. Agora, sou eu quem me persigo, pensou, sonhando com um mundo novo, cheio de novas possibilidades. Perdeu-se no deserto. Exausta e com olhar cheio de espanto, viu uma nuvem de poeira tomar a forma de um belo homem. Era ele, o diabo. Ele a olhava de uma maneira que lhe fez gelar os ossos. Estou perdida, pensou desejando fugir dali. Tenho sede, ele falou docemente. Ofereço-te as minhas águas, não para matar a tua sede, mas para roubar a tua calmaria. E, por livre escolha, prendo-me em tuas pernas de fogo, rodeada de respostas. Esta noite, te amarei... Na tua sombra, esconderei os meus medos, aliviarei o meu pranto. Quando a luz nascer, gritarei ao mundo que ressuscitei no gosto das maçãs, respondeu, tentando fugir da solidão. Uniram os seus destinos. Sob o céu aberto, com gosto de vinho, as suas línguas, demoniacamente puras, uniram-se, acendendo fogueiras, penetrando mundos invisíveis, anulando o bem e o mal. Em busca do amor, ela ofereceu-lhe o que tinha de mais sagrado, a sua cruz: a sua boca, o seu sexo e os seus seios. E, nessa cruz, morreu por amor...
Depois de algumas horas, ela acordou. Procurou o seu amor e não o encontrou. As horas de loucuras impensadas deixavam, agora, uma enorme tristeza, um grande vazio no seu coração. Precisava fazer o céu voltar e com ele o seu amor. Procuro aquele que perdi, mas aquele que perdi não me procura, pensou sem desistir da sua busca. Passaram-se meses. Grávida, prestes a dar a luz, ela ainda o procurava. Arrancou-me o coração, os olhos, o sexo! Ávido de sangue, possuiu as minhas carnes e todas as noites, me persegue. Em fuga, o experimentei, e ele nunca mais sairá de mim, porque ferida de amor eu estou!, Pensou mergulhando na loucura.
Nesse imenso vazio, ela trouxe ao mundo o seu filho, o fruto do seu pecado. Em seguida, sentiu-se arrastar, por forças desconhecidas, invisíveis, até uma grande cruz . Nela, com o corpo em chamas, gritou em desespero: Deus, por que faz isso comigo? O amor e o pecado habitam em mim. É esse o meu castigo? O primeiro não me trouxe nada de bom. O segundo, intitulado Satanás, nada mais é que o meu instinto de viver. Por que me criastes imperfeita e com sabedoria? Porque me criastes das fezes, do excremento ao invés do pó puro? Não me livrei da luz, foi ela quem fugiu de mim... Sou feroz no amor como também no ódio. Quando entro numa rixa, não admito insultos. Maldita armadilha! Mesmo que, em minhas sucessivas vidas, queimem a minha anca viva, seguirei em busca do amor... Não tenho saída... Sabes que toda a alma almeja a companhia de outra que lhe complete... Maldito! Trouxestes o amor para o meu espírito feminino e, a partir desse momento, não haverá paz, nem para mim, nem para os homens!...
Nesse momento, o Diabo, observando-a ser consumida pelas chamas, flutuava sobre as águas, refletindo, nelas, a sua outra face, a sua porção divina, a sua imagem de Deus, que satisfeito com a sua criação, sorria, tremendo de felicidade.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Esquina do Mundo - A hora do Cão Lobo

Cláudia Magalhães

Três amigos; Um bar!
Amores, amizade, inveja, traicões...
O acaso rege o destino de homens e mulheres
Na esquina do Paraíso com o Inferno
Onde a hora é sempre dezoito horas
Hora do cão lobo
A esquina do Mundo
Um mundo à beira da tragédia
Regidas não por mãos humanas
Mas pelo incompreensível.


(Trecho da peça teatral "Esquina do Mundo - A hora do Cão Lobo")

Dezoito horas... Esquina do Paraíso com o inferno... Há pouco, o Sol beijou a lua e sob o canto suave da Ave Maria, eles fizeram juras eternas de amor. A Rainha da noite, excessivamente romântica, cheia de saliva, fez amor nos astros e estrelas, deliciou-se na boca do seu amante, virou música, verso, prosa... Ele vai embora. Vazio. Há pouco, ele a pegou por trás e ela sentiu toda a sua paixão escorrer pelo seu sexo, descer até a terra e formar um mar de sangue...
Esse sangue nos revela um prédio de um vermelho extravagante, onde, no térreo, funciona um bar popular, destes encravados nos becos das grandes cidades. De um lado funciona o salão com mesas e cadeiras muito simples, posters de time de futebol e cartazes com dizeres como "Protegido por Deus" e "Fiado só amanhã", do outro lado, separada por um enorme balcão, uma pequena cozinha. Em cima, dois kitnets, um de Rato e o outro de Zé e Ceição. Nos vários sets a vista: Esperança arruma o quarto de Rato e se arruma, incansavelmente; Zé, no seu quarto, bebe e olha fixamente para o relógio de parede; Gardênia cantarola na cozinha, exultante; No salão, Patrícia toma café com bolacha e escuta Rato, que sentado com os pés na lama, canta um chorinho acompanhado por dois boêmios que estão em uma mesa próxima; Teobaldo está sentado no meio da escada observando a lua que brilha incansavelmente no céu, cheia de tristeza, melancolia, poesia, contrastando, e por isso mesmo, enaltecendo a decadência do lugar.

(Salão do bar)


RATO:

Não me condene, não sou vagabundo

Nem tampouco vigarista

Sou um boêmio, um sonhador

Eu tenho alma de artista.

Na mistura do céu e do inferno

Encontrei a esquina do mundo

Da vida, do poeta,

Do doutor, do moribundo.

Aqui ele ri, ele chora,

Toma cana com limão e mel

Toma rum com coca-cola

Com os pés na lama

Olhando para o céu

Desabafa, se esfola

Vai afogando a sua dor.

É a Ribeira dos becos

Da lama, da amargura

Onde tudo e todo sentimento se mistura:

Fé, Cajú,

Sangue, Coentro,

Papa-Figo, Urubu,

Medo, Tormento,

Black-Out, Gentileza,

Virtude, Desalento,

Badalo, Fineza,

Tristeza, Lamento.


Cascudo, História,

Siqueira, Poesia,

Djalma, Vitória,

Navarro, Alegria.


Tributino, Destreza,

Carrapicho, Flores,

Zé Areia, Esperteza,

As Marias, Os Amores.


Coragem, Velocidade,

Loucura, Lambretinha,

Óvni, Verdade,

Nazi, Meladinha.

É do resultado dessa mistura

Que se faz esse lugar.

Venha, amigo, se sentar

Não precisa documento

Basta só ter sentimento

E entre uma alegria e outra

Um pouco de lamento

Porque daqui ninguém sai isento

Sem vontade de chorar!





segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Terra dos sonhos





Cláudia Magalhães


O teu sorriso devorava encantadoramente os meus pensamentos, contrastando e, por isso, enaltecendo, o som melancólico da música Send in the clowns, na voz inconfundível de Carmem MacRae, enquanto eu dirigia embevecida, em direção ao nosso apartamento. Será esse sorriso que ele me dará como grata recompensa quando eu lhe mostrar a grande surpresa da noite: As nossas passagens para a Terra dos Sonhos, Paris! A nossa primeira viagem depois de dois anos de casados. Lá, na terra mágica, ele me fará um filho, Vinícius, ou uma filha, Diadorim... Pensei, deixando-me embriagar, sem rédeas, pelo encanto da tua bela imagem que me guiava. Ah, o teu sorriso... A minha ligação com o divino. Nele, se acham contidas todas as leis do amor, todo o poder dos sentidos... Ele estava tão presente, tão luminoso em meus pensamentos, que não enxerguei o carro a minha frente... Escuro.
Perdi os movimentos do corpo. Deitada numa cama, em tempo integral, passei a viver sob os cuidados de terceiros. Nos três primeiros meses, chorávamos juntos, todas as noites... Um dia, acordei com um suave beijo na testa. Abri os olhos devagar e vi o teu rosto. As mesmas feições, os mesmos gestos, o mesmo nome... Mas não era você! Procurei algo humano em teu olhar, piedade talvez, mas foi um grande vazio que encontrei. Depois de um longo e pesado silêncio, você chorou... E o teu choro confirmou o que eu já sabia... Você lançou um olhar vago pelos arredores do quarto, deu-me as costas e partiu. Tentei gritar, mas a voz me escapava. Incapaz de realizar o menor gesto de espanto e de dor, paralisada, enrijecida, recebi a tua ingratidão e o escárnio do destino. O vazio que você deixou encheu o quarto e tornou-se o meu universo.
Um ano se passou. O meu coração transformou a saudade, o horror do nada, numa aliada esperança. Fazendo uso das sete cores, dá vida ao passado que chega até a mim em forma de sonhos... Sonhos de amor, sonhos de loucura... Entro neles através do teu sorriso. Ele vira o teto do mundo. Derrete a mobília, derruba as paredes do quarto e nos revela a terra dos sonhos... Estamos em Paris... Fazendo amor como quem faz poesia. Rompendo os limites da carne, confundindo as nossas almas, fazemos um filho... E o fim transcende o nada e torna-se começo.
Sei da existência de amores nobres. Eles correm pela vida. Raramente coincidem. Vivem uma série de enganos e morrem com o seu próprio veneno! Estou morta. O meu coração, louco, rejeita a minha condição. Fiel ao seu sentimento, tentando tornar perfeito o imperfeito, alimenta-se de sonhos, das lembranças do gosto das maçãs e, com grande pressa, continua batendo...