quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Espelho, espelho meu!


Cláudia Magalhães

Estava nu diante do espelho. Olhou seus pés, as pernas finas, o tórax pouco definido, os braços compridos, as mãos grandes e magras, o rosto delicado, quase feminino. Gostou do que viu, exceto os pelos insuportáveis, que o deixavam nervoso, como se tivesse um grave defeito físico. Tinha dezoito anos e era virgem. Chamava-se Pedro, que significa pedra, contrastando com sua alma de cristal. Uma alma, com um brilho intenso, ofuscada pela imagem que sorria, falsamente, diante do espelho. Entrou no banheiro e depilou-se por inteiro. Lavou o corpo com água do chuveiro, e a alma, com água de chuva. Secou-se com cuidado e, sentado diante do espelho, que ficava ao lado dos porstes de Oscar Wilde e Arthur Rimbaud, seus ídolos, calçou as meias finas que estavam sobre a cama, cobrindo o sangue que teimava em lhe escorrer pelas pernas. É preciso ferir-se para continuar vivo, pensou observando os pequenos cortes sobre a pele. Roçou as pernas uma na outra. Nunca experimentara nenhum prazer maior que aquele. Colocou a sandália prateada, de salto finérrimo e, por último, o vestido vermelho de seda que lhe ia até a altura dos joelhos e deixava a mostra seus ombros delicados. Em seguida, seguindo a geografia da alma, pintou o rosto. Olhou-se no espelho e gostou do que viu. Pedro não mais existia. Pegou a bolsa e atravessou a sala com cuidado para não acordar sua mãe. Quando já estava próxima a porta de saída, escutou um leve ranger na madeira da escada. Sentiu o sangue gelar e, devagar, olhou para trás. A sua mãe a observava, na penumbra, imóvel. Abriu a porta, com pressa, e saiu para o deserto do mundo, com as pernas bambas, pisando no chão firme como quem pisa em areia fofa e quente. Com sede de vida, como um criminoso, um homicida.

Nunca conhecera o seu pai. A sua referência de família girava em torno da saia de sua mãe, Alma. Uma saia que cobria com sete anáguas uma lua cheia de desejo, com sede de Sol. O seu pai morrera de câncer quando ela estava grávida de sete meses, e com ele, a sua felicidade. Tornou-se uma mulher de poucas palavras, uma sombra da saudade. Dividia o seu trabalho entre a sua profissão de bibliotecária e os pincéis. Seus quadros, sempre, retratavam pessoas tristes, melancólicas. A sua forma de ver o mundo. O que minha mãe está pensando de mim nesse momento..., pensou ligando o som do carro. É certo que ela sabia que o filho tinha alma de mulher, mas, ela, nem ninguém, nunca o vira vestido como tal. Sempre o fazia trancado em seu quarto. Era filho único e o véu de noiva da sua mãe substituíra as bonecas que nunca tivera. Leve-me para sair hoje à noite, onde haja música e haja gente que seja jovem e viva..., a música de Morissey fez sua mente seguir viagem, suspensa na lua.

Chegou na Praça das Flores. Sentou numa das mesas e pediu uma cerveja. Sentiu os olhares curiosos, zombeteiros, que desconhecem o valor da vida, penetrar-lhe a carne e atingir-lhe o coração. Risos nervosos, gargalhadas debochadas soltas ao vento. Nesse momento, envelheceu dez anos. Cada segundo parecia horas. Sabia que precisaria enfrentar aquela situação, mas não resistiu. Com os cotovelos sobre a mesa, segurando a cabeça com as mãos, chorou desesperadamente, sem entender que aquela dor era, em parte, manipulada. Era o choro que alcançava o tamanho indefinido das poesias, das músicas, dos livros que povoavam sua cabeça cheia de sonhos adolescentes. Diferente de alguns que aconteceria ao longo da sua vida, mas não muito, já que todo choro arrasta uma série de lástimas, que sob o julgamento dos olhares externos, e por isso, afortunados, seriam, facilmente, lançados ao abismo. Sentiu saudade do seu quarto e dos inúmeros personagens imagináveis que o rondavam. Posso sentar?, perguntou um rapaz alto e magro, que surgiu a sua frente como um furacão, interrompendo os seus pensamentos. Acenou afirmativamente com a cabeça. Ele tinha os cabelos pretos, curtos e desalinhados, e enormes olhos castanhos com olheiras escuras que a encaravam destemidos. O seu coração saltou do peito, feito um animal selvagem, colando-se ao céu da boca, e o seu corpo ardeu em brasa, fazendo a tristeza evaporar-se por completo. Conversaram coisas incríveis. Era um paulista de vinte e dois anos, e estudava gastronomia. Estava em viagem de férias com os pais e aquela era sua última noite na cidade. Descobriram que gostavam das mesmas músicas, dos mesmos autores e eram apaixonados por cinema. Ele era uma pessoa excepcional e sua companhia a fez esquecer seu desprezo por grande parte da humanidade. Bem, já está amanhecendo... Eu preciso ir. Vamos viajar ao meio-dia e ainda precisamos nos despedir de alguns parentes. Além de descansar um pouco, é claro, ele falou com certa tristeza. Pediram a conta e seguiram em direção ao carro dela. Quer que te deixe em algum lugar?, perguntou na esperança que ele dissesse sim. Obrigado, estou de carro, agradeceu. Com um lindo sorriso, aproximou-se e, segurando-a pela cintura, beijou-a com paixão. Ela sentiu a vida começar naquele instante e feito criança explorou o mundo novo pela boca. Com a língua, livre no céu infindo da boca, mudando as estrelas de lugar, descobriu seus desejos mais secretos. Salivando mel, engoliu, naquele beijo, toda a doçura do mundo. Um encontro de alma para alma, tanto mata, quanto faz nascer!, pensou observando ele desaparecer, lentamente, sob o céu vermelho.

No caminho de casa, lembrou da imagem da sua mãe no alto da escada. Olhou para o relógio. Eram cinco horas da manhã. Ela, com certeza, estaria acordada. O que dizer?, pensou abrindo a porta da sala com cuidado. Silêncio. Foi até o quarto dela e, estranhamente, a encontrou adormecida com as mãos sujas de tinta. Melhor assim. Descansaria um pouco e enfrentaria esse problema com calma, sem hipocrisia, nem mentiras. Seguiu em direção a seu quarto e viu pendurado, no lugar do espelho, um quadro. Era seu retrato. Estava linda com o vestido vermelho. No lugar do rosto assustado, da noite anterior, um rosto sereno e feliz. Ao lado, um bilhete: Para minha linda menina, Cristal! Ass.: Alma. Ficou parada, imóvel, tomada por grande emoção. Lembrou com carinho da mãe, uma mulher silenciosa, sempre vestida de preto, com o seu eterno avental branco sujo de tinta, e um cheiro suave de manga doce invadiu o quarto. Cristal, que lindo nome!, pensou sorrindo feliz diante do quadro que, agora, refletia sua imagem como um espelho.