terça-feira, 30 de setembro de 2008

Em Pedaços

Cláudia Magalhães


A noite corria doce. As águas do rio lembravam calda de açúcar e as nuvens do céu, tufos de algodão. Ele esperava por seu amor na ponte dos desejos, sentindo-se um novo homem. Cantarolava a sua música preferida, com a felicidade no peito alcançando as notas da loucura, que em seguida, perdiam-se no vento, num vôo belo e insano. Sentia-se livre de todos os erros. Paria a si mesmo e fazia-se anjo. Milagres do amor...
Ela chegou na hora marcada. Era alta, branca, de cabelos pretos e olhos amarelos. Vestia um vestido de algodão com estampa de flores miúdas que lhe ia até os pés. Ele aproximou-se, segurou-lhe a cabeça com as duas mãos e beijou-lhe a testa, o que a fez levar a mão esquerda até os lábios, num gesto de timidez. Ele é tão gentil!, Pensou entregando-lhe a mão. Venha, vamos caminhar um pouco, ele pediu com doçura. Com trinta e poucos anos, sentiu-se uma adolescente. Nunca foi feliz no amor, embora tivesse tido vários relacionamentos. Todos terminaram de forma pacífica, sem grandes traumas, exceto o último, o grande amor da sua vida, mas que a abandonara com violência, deixando-a em pedaços que agiam como se fossem independentes, correndo, se humilhando por uma migalha daquele amor, destruindo a sua essência, reduzindo-a a carne e ossos. Agora, um ano depois, estava ali. Talvez, estivesse sendo muito ousada em se entregar a um estranho daquela forma, afinal, só trocaram algumas poucas palavras quando ele ligou para o seu número por engano. Que importa? Ainda estou doente e nenhuma dor pode ser maior que a minha, pensou tentando afastar a tristeza.
Caminhavam conversando amenidades quando começou a chover fortemente. Ele segurou firme a mão dela, atravessaram o pátio de um parque abandonado e seguiram até uma pequena casinha. Venha, aqui estaremos protegidos da chuva, disse abrindo uma porta velha de madeira. A casinha resumia-se a uma salinha, com uma pequena mesa de madeira e um imenso espelho na parede de entrada, e a um pequeno banheiro.
- Não conhecia esse lugar... - cometou sentindo muito frio.
- Faz, mais ou menos, um ano que esse parque está abandonado. – Falou tirando o enorme casaco e colocando-o sobre a mesa. Aproximou-se dela e olhou-a profundamente por alguns segundos.
- Você quer fazer sexo comigo? – ela perguntou num impulso.
- Eu quero te amar... - respondeu cheio de desejo.
- Sexo sem amor... - baixou os olhos e sorriu com amargura.
- Eu quero a mesma coisa que você. Pode ter certeza, o amor está incluído nisso...
Ele beijou-lhe os dois olhos e a boca. Ele é apenas um estranho, ela pensou tentando controlar o desejo que aumentava violentamente. Fechou os olhos, e através daqueles carinhos, tentou materializar a saudade do amor perdido. Sentiu a temperatura de seu sexo subir rapidamente, acumulando calor, tal qual uma panela de pressão prestes a explodir, a devorar-lhe as carnes com a sua água de fogo, e queimar-lhe os ossos até restar-lhe somente o pó. Ainda com os olhos fechados, ela tirou a roupa revelando as suas carnes brancas. Vem, amor! Nossos corpos foram feitos um para o outro. Vem, logo! Que esse amor está me matando!, Pensou deitando no chão frio, abrindo levemente as pernas. Era-lhe tão grande o desejo que sentiu uma enorme vontade de chorar. Como você é bela!, Ele disse, pensando na imensidão do amor escondido por trás daquela porta, daquela flor em carne. Sentiu o perfume doce do amor invadir a pequena sala. Caiu de joelhos e abocanhou-lhe o sexo. Precisava preparar-lhe o caminho, desenrolando o tapete liquido, sorvendo cada gota daquela água santa para dentro do seu corpo, benzendo-o. No início, com cuidado e carinho, enchendo o ambiente de gemidos baixos, doces, até tornar-se um ato desesperado, cheio de ansiedade. Pare, está doendo!, Ela gritou, causando, nele, grande alteração no espírito. Mordeu-lhe o sexo com força, Ele não poderia escapar, não daquela vez. Ela soltou um grito animal quebrando o silêncio da noite. Em desespero, estendeu o braço direito, pegou um dos seus sapatos e com o salto fino desferiu-lhe vários golpes na cabeça, até conseguir desvencilhar-se e correr para o lado oposto daquele pequeno inferno.
- Louco! Você é um louco!
- Eu amo você! - Disse olhando-a intensamente.
- Eu quero ir embora!
- Não torne as coisas mais difíceis pra mim. Diga que me ama...
- Eu não posso amar você, nos conhecemos há poucas horas.
- Por favor, diga que me ama...
- Eu não amo você! – gritou com desespero.
Nesse momento, ele teve a absoluta certeza. O que ele procurava não estava naquele coração. Tirou uma faca do casaco e enfiou no peito dela. Ela caiu trêmula no chão. Observou-a com cuidado. Ela já não estava mais ali. O esconderijo do amor estava, finalmente, arrebentado. Começou, então, a sua busca, partindo-o, deformando-o. Aonde você está? Na cabeça, nos fazendo perder o juízo, a razão? Na boca, que guarda o céu e cospe obscenidades? Nas mãos, atado em suas linhas tortas? No sexo, que chora no amor e na masturbação? Nos pés, que correm com sede de lama?, Procurou desesperadamente até a exaustão, até entender que ele se escondera num lugar que ele não teria acesso. Ele fugiu da vida. Com a dor, escorregadio e sem forma, entrou no sono dela, e se escondeu em seus sonhos..., pensou, com tristeza. O amor havia surgido em sua vida para, novamente, horas depois, deixar somente carne, sangue e vísceras.
Observou, pela janela, a noite se recolhendo para dormir. Precisava agir antes que amanhecesse. Colocou toda aquela sujeira num saco. Olhou-se no espelho, estava com uma aparência horrível, sujo de sangue e suor. Tomou um banho demorado e vestiu a mesma roupa. Pegou o casaco que ficara sobre a mesa, tomando o cuidado de abotoá-lo por completo, dos joelhos até o pescoço, a fim de esconder as manchas de sangue. Com a mente em branco e com o seu amor em pedaços, retornou a ponte dos desejos e, guiado pelo instinto, jogou o saco no rio. Era a terceira vez, naquele ano, que saía com o Sol, cheio de desejos e sonhos e voltava na madrugada, oco, vazio. Não podia se queixar de solidão. Misturado aos seus inúmeros e bons amigos, logo, logo, estaria recuperado. Seja um bom menino!, Lembrou com carinho das últimas palavras da sua querida mãe antes de sair de casa. Precisava comprar pão fresquinho e preparar-lhe o café. Dormiria, pelo menos, uma hora, em seu colo, antes de ir para o trabalho.
As águas do rio, agora, refletiam o céu em vermelho, destruindo a vaidade de Deus. Tentou cantar. Não conseguiu, a sua língua estava presa no céu , com gosto de sangue. Então, chorou. Os seus olhos deram a sua boca o gosto amargo da vida, o sal que mantém sobre a terra somente a carne e os ossos, mas que é inimigo do amor, que ele tanto amava, mais que qualquer outra pessoa. Agora, precisava dormir. Com a luz do Sol, talvez o encontrasse novamente, então cantaria a sua canção preferida, sonhando com um final feliz.