sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Monstros


Cláudia Magalhães



Depois de quarenta anos sonhando acordada com um mundo que não fosse manipulado pelas emoções, onde não existissem sentimentos de horror, nem de piedade, esse monstro de riso abafado, grosseiro, preso na garganta por um bolor de futilidade, aprendi a enfrentar minhas emoções. Hoje, sou eu quem me persigo. Às vezes, tiro-as do comando, me enxergo, descubro a inteligência e colho flores; Em outras, deixo-me guiar até meu centro escuro, sem limite de espaço e de tempo, perco a chave, fujo de mim mesma, sangro. Ingerindo razão e emoção no mesmo prato, decido qual dos dois será o excremento. Não sei em qual desses opostos me ofereço amor, pensou observando o filho cair em sono profundo no seu colo, causado pelo efeito dos sedativos.
Sim, essa massa branca, disforme, que há quarenta anos rasteja pela casa soltando grunhidos, é o meu filho! Como eu o amo!, constatou com tristeza, acariciando o fruto de um amor que teve aos trinta e cinco anos e que desapareceu logo após o parto, deixando como única prova de sua existência os míseros depósitos feitos, todos os meses, em sua conta. Não sabia o real motivo daquele gesto, talvez ele estivesse envenenado de piedade, ou quem sabe, guiado pelo medo de se perder da estrada que acredita um dia levá-lo ao Paraíso. Desde então, ela passou a dedicar-se religiosamente a seu filho e a protegê-lo de um mundo de olhos amedrontados, de nojo, de conversas rasteiras e tolas, de orações sem fé perdidas ao vento. Bom dia, Senhora! Como vai o seu filho?, lembrou da pergunta da vizinha que encontrara, pela manhã, no mercado da esquina. Como Deus quer!, respondeu secamente. Todos os dias, eu oro por ele e por meu filho, que, agora, passou a andar com gente da pior espécie!... Cada um com a sua dor!, concluiu com um olhar de mártir. Mal sabe essa mãe o quanto eu gostaria de chamar meu filho de ladrão, de mentiroso, de homicida. De vê-lo chegar tarde da noite com cheiro de vida, sangue, lágrimas, suor, saliva, com sede de rua. De quantas vezes desejei amar novamente, mas não poderia suportar ver no ser amado, desejado, a expressão miserável de escarro, o vômito reprimido, uma compaixão monstruosa que só serviria para aumentar a vaidade de Deus, pensou com amargura. Lembrou, então, de todas as noites, durante quatro décadas, em que colocou aquela cabeça disforme em seu colo e lhe falou da existência de monstros, de todas as espécies e de todas as cores, que, até hoje, evitam a sua calçada com medo da casa, que para eles é mal-assombrada, pois nela mora um anjo. Essa noite, doente e cansada, ela começa a falar sem conter as lágrimas:
- Um lindo anjo, com pernas de fogo, que desceu a terra escorregando pelo arco-íris, sentado sobre uma nuvem e vestido de Sol. E quando observava o meu semblante triste e cansado, deitava a cabeça em meu colo e, sem mover os lábios, aliviava meu pranto, dizendo-me que por trás desse mundo de sombras, a esperança é preservada. Não é sem razão que o amo! Hoje, meu anjo, nós vamos para o mundo dos sonhos, onde habitam seres encantados, iguais a você! Eles possuem um coração puro, não conhecem orações e nem pedidos. Não se importam com as aparências, vivem do simples e podem rir até mesmo de seus pequenos hábitos. Brincam de se reunir em volta de uma grande fogueira, onde contam histórias que nos enriquecem a sabedoria. Trocam presentes que se chamam: Amor pelo próximo! Amor abnegado! Amor! Lá, ninguém precisa falar! Tamanha é a cumplicidade que proferir uma palavra seria um desperdício. Nesse mundo, teu espírito será livre, minha criança. Lá, não existe velhice, ninguém dá adeus, ninguém vai embora, e eternamente te chamarei de: meu filho!
Levanta com passos firmes, decididos, joga gasolina em seu corpo e em seu anjo adormecido. Espalha o líquido pelo chão do quarto e pela casa inteira. Volta até o quarto do filho, coloca novamente sua cabeça em seu colo, e pega, sobre o criado-mudo, o pedaço de papel com a oração de todas as noites, desta vez, com um cuidado demoníaco, pois chegara o dia da cobrança e não poderia esquecer nenhuma palavra. Risca o fósforo, joga-o sobre o tapete do quarto e começa a sua oração:
- Ave-Maria cheia de graça... Que graça é essa que se faz presente agora? O Senhor é convosco... Ele não enxerga o meu sofrimento? Ele não vê que a minha alma não encontra consolo porque não nos achamos na mesma condição! Bendita sois vós entre as mulheres... Mulheres? As mulheres da terra existem para o sofrimento e são entregues a dor sem piedade. Ao conceber o seu filho concebe também um amor que nenhum freio segura e a vida, no momento que lhe convém, o transforma em nosso maior inimigo, fazendo-nos pagar tão caro a maternidade! Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus!... Porque o meu já caiu na desgraça. Vejo aquele que gerei, que deveria ser testemunha da minha velhice e enterrar-me com suas próprias mãos, entrar e sair desse mundo como um verme! Será esse nosso castigo: Dormir sonhando com o céu e acordar no inferno? Santa Maria, mãe de Deus!... Eu quero a sua presença agora! Receba em teu reino o filho dessa tua miserável serva para que nada lhe falte. É o seu dever, pois és mãe e és Santa! Rogai por nós pecadores... Porque toda mãe ama seus filhos de alma para alma, com suas faltas, seus erros e seus sonhos inúteis! Que em teu seio, ele encontre morada; nas tuas palavras, a luz; no teu amor, o perdão de ter nascido torto! Peço-te agora a morte! A velhice já me destrói as carnes, a qualquer momento a vida poderia me cuspir e o meu anjo viveria nesse mundo como um cadáver. Estou pronta, e já aguardo o momento de reencontrar o amor perdido...
Nesse momento, o fogo estende-se na direção deles. Um fogo real, nobre, consome o corpo da velha mãe e do seu herói, que tantas vezes sonhou em chamar de ladrão, de mentiroso, de homicida. Agora, a terra gira devagar, cuspindo o amor nobre, que tanto procuramos e que, cansado, punido, foge da vida, buscando refúgio em nossos sonhos.