terça-feira, 3 de junho de 2008

A Carta

Cláudia Magalhães


O relógio da parede marca as primeiras horas do anoitecer de uma sexta-feira. O silêncio escuta com paciência as batidas descompassadas do coração de Dona Alma, que sentada à pequena mesinha redonda do terraço fracamente iluminado, observa atentamente a rua comprida que segue ladeira abaixo. São fortes, as lembranças do passado. Sente uma saudade tão assustadora e, ao mesmo tempo, tão infinitamente sedutora, que é impossível rejeitá-la. Há um ano, um amor que era tudo na sua vida, foi embora, deixando o seu coração cheio de agonia. Desde então, dorme e faz as refeições na pequena varanda. Ele pode voltar a qualquer momento, pensa. Abre o bloco grande de papel e começa a escrever.
Meu querido, porque sumir por tanto tempo? Se te magoei por algum motivo, peço-te novamente perdão e milhões de vezes te pedirei se assim necessário for. Volta, amor... A saudade já roubou os meus sonhos e insiste em me deixar com uma aparência doentia... Tenho na garganta uma pedra deixando os meus olhos cobertos de areia, o que justifica tantas lágrimas... tanta chuva... Ela desceu até o meu sexo e matou a minha flor. O peso é insuportável, por isso são poucos os meus movimentos. O meu coração continua acordado. A dor ajudou a mostrar o seu valor . Ele continua forte, embora apresente sinais de loucura... Volta, que o meu Deus está triste porque dia e noite eu jogo a minha ira sobre ele... É grande a espera, mas vale a pena, pois espero a coisa mais linda do mundo... Volta, meu arco-íris...Volta, que tenho algo a te dizer, algo que, talvez, já tenha dito antes, mas que, agora, é de vital importância pra mim, pois só assim, darei um fim a minha dor.
Escuta o barulho do arrastar das sandálias de Pretinha, sua empregada. Dobra a carta com cuidado, a coloca dentro de um envelope, e em seguida, cola uma fitinha cor-de-rosa. No verso, escreve com letra miúda o nome do marido. Pretinha chega com as sobras do almoço.
- Está na hora do seu jantar.
- Pegue essa carta Pretinha, coloque-a no correio. De hoje, não passa.
- Pelo amor de Deus, Dona Alma! Aceite a realidade, o seu Manoel morreu! Morreu, entende? – esbravejou Pretinha – Há um ano, que a senhora, todos os dias, escreve essas malditas cartas e todos os dias eu as jogo no lixo!
Neste instante, Dona Alma vê o seu marido subindo a velha rua estreita com sua camisa branca de linho, sua calça de micro-fibra, a preferida em tempos de calor, e o seu eterno chapéu Panamá. Corre até o portão, e com as mãos na cabeça, grita:
- Manoel! Manoel!
Ele voltou, e seria loucura duvidar. Cai de joelhos agradecendo ao céu, agradecendo a vida dedicada ao amor fiel e nobre, as tristezas e alegrias compartilhadas, agradecendo a rua, bendita rua, que com a ajuda de pisadas retas ou tortas guarda em suas frestas a sua linda história de amor... Dona Alma vê Manoel se aproximar sorrindo. Ele atravessa o portão, lhe estende com serenidade a mão, e diz:
- Vamos, querida! Você precisa descansar...
Deixa-se abraçar feliz. Observa Pretinha a olhando apreensiva, curiosa.
- Pretinha, obrigada por tudo – sussurrou, aproximando-se da amiga.
- Está tudo bem com a senhora? Eu não queria...
- Pode ir em paz, minha querida. Eu vou deitar no meu quarto, na minha cama... Preciso dormir... - Segue o marido em direção ao interior da casa.
Pretinha sorri. Finalmente Dona Alma havia compreendido a situação. Pega a sua bolsa, fecha a porta com a sua chave e, pela primeira vez, nesse último ano, vai para casa aliviada. Quem sabe, encarando a realidade, ela recomeça a sua vida, uma vida nova!, pensa com carinho.
Dona Alma deita feliz ao lado de Manoel, o seu amor. Deita procurando a vida desejada. Deita para nunca mais acordar.

4 comentários:

Cefas Carvalho disse...

Minha dramaturga favorita agora é minha contista favorita. Parabéns pelo texto, pelo blog e por tudo de bom que vc me deu e dá. Beijos!

Rickardo Medeiros disse...

Primeiramente, gostaria de parabenizá-la pelo excelente espaço que vc está nos presenteando. Que viajem... É muito bom ter a nossa disposição sínteses de suas obras. Realmente é magnífico e indescritivelmente prazeroso tudo que flui da sua mente e do seu coração...
Seu blog é, sem dúvida, um dos melhores espaços, do gênero, para quem ama e aprecia a arte com qualidade.
Adorei o texto!
Beijos...

Jean disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Jean disse...

Minha querida, parabéns pelo dom que Deus te presenteou, pois sabes usar as palavras como ninguém e interpretar de maneira magistral.

Parabéns também pelo blog, está maravilhoso.

Minha eterna atriz preferida.

Um grande beijo.