Cláudia Magalhães
Não sei o que é melhor, dormir ou acordar com o homem amado, penso ao velar teu sono, com a certeza que o amor não é um final feliz, mas o desejo de tê-lo, é a tua carne dentro da minha alma depois do gozo e tudo o que ela me diz no silêncio do teu sono tentando fugir do perigo, é a calma e a delicadeza que experimento no momento em que me dizes que não sonhas e com as pálpebras cansadas despede-se dos odores do amor, do gosto do vinho, da música suave, murmurando com ternura que não sabes se é melhor dormir ou acordar comigo e reforçando o laço que nos une, oferece-me teu ombro, onde fico até que o corpo exija que me afaste, mas não sem antes colar meu pé direito em teu pé esquerdo - talvez desejando que sob o encanto desse instante, algum milagre se manifeste sob nossos dedos e me leve contigo dividindo os mais doces prazeres pelos astros e estrelas - e assim permanecer até saber que já voas alto, sim, não sonhas porque sabiamente depositas com grande zelo no portal do esquecimento as lembranças do dia, cria asas e voas como uma ave aventureira, audaciosa, que desobedece à ordem habitual do mundo, observando os tesouros e as mazelas deste como quem gera a si mesmo, enquanto nesse instante, observando teu corpo morno e nu, não resisto ao desejo de acariciar tuas costas livres, asas da minha mente, e sentindo uma ternura que afasta qualquer violência, uma espécie de força singular capaz de destruir um exército de ladrões que por algum motivo queiram te roubar a paz, beijo tua nuca, murmuro em teu ouvido que te amo com paixão e com loucura, em pensamento desejo que voes bem alto, pois continuarei atenta, distante dos seres das trevas com suas inteligências desesperadas - a posse, a hipocrisia, o egoísmo, o rancor - que esses vermes que cortam o ar com suas línguas afiadas fiquem para sempre esmagados sob a terra, longe do nosso amor e dos nossos filhos, pois quero-te livre e sorrindo (quando vi teu sorriso pela primeira vez, te amei!), penso velando teu sono até as exigências do corpo cansado me fazer adormecer com o coração acordado, e assim permanecer até o meu despertar com o teu abraço repleto de carinho e desejo, e com um simples movimento de quadris recebo tua carne dentro da minha, arrastando o fogo que nos escapa feito fumaça pelos poros, pelo olhar, pela saliva, pelos sexos inchados, por cada parte do meu corpo dizendo que somente tu, amor, me enrubesce, me emociona, que nosso amor não rima com dor, que antes dele surgir em minha vida eu era pedrinha miúda, pisada, carne sem alma, sem rumo, sem destino, as linhas das mãos tortas, embaralhadas, meus pés andavam em desalinho, sem destino, em busca do nada, dizendo como eu quero que o nosso amor seja eterno, sem prazo pra acabar, sem hora marcada, e, por ser o amor tudo o que entra e sai, te vejo com um sorriso e com os olhinhos brilhantes entrar e se renovar em meu peito, em minhas pernas, essa cerca que queima, que arde, até me levantar da terra - sim, amor meu, nessa hora me fazes voar - e, com metade do sangue em meu sexo, meu corpo treme e me dissolvo em água, fazendo nesse instante, à minha volta, não existir mais nada além do enorme desejo de ficar a teu lado por seis eternidades e meia, e assim, com esse amor que não é dobrável, te vejo sair para o mundo com a certeza de que, sem trapaças, sem roubo, como um sábio conforto, possas recorrer a ele para dividir um sorriso pelos quatro cantos da terra ou um choro do qual te aliviarei distraindo teu coração com poesias regadas a vinho, filmes perfumados com temperos irresistíveis, músicas que te transformam em astro, viagens que nos façam sonhar acordados, com um sorriso que em silêncio te diga o quanto sou grata pela oportunidade de estar novamente a teu lado e ao fim de mais um dia velar teu sono, tentando descobrir os mistérios que envolvem teu corpo nu, pois observando-te dormindo, tentando te proteger de qualquer inimigo, tornei-me bela diante do mundo, que admirado em me ver envolvida por tamanha ternura, todas as noites me desafiando com o mesmo enigma - se é melhor dormir ou acordar contigo - me fez descobrir exatamente os riscos que me acompanham e que assumo, e que por ti, homem amado, através do teu sono, aprendi a entrar para dentro de mim, a não ter medo do perigo, e que por tudo isso, desejo que durma em paz, querido, porque juntos dormimos com o amor.
Paraíso Perdido - Contos
Escondo-me nas infinitas possibilidades das palavras, em seus altares devassos, em seus inferninhos divinos, onde o ponteiro do relógio move-se na velocidade e na direção dos meus pensamentos, onde a única lei é a de perder o juízo... Escondo-me onde as palavras fazem amor com meus demônios e tem filhos. Centenas deles.
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
quarta-feira, 3 de novembro de 2010
Dorme Neném
Cláudia Magalhães
"Tutu-Marambá não venha mais cá, que a mãe da criança te manda matar, bicho-papão sai de cima do telhado, deixa a menina dormir sossegada...'', Ofélia acordou com a voz da criança cantando e sentiu um forte mal-estar, uma náusea que fazia seu estômago dar voltas e mais voltas. As pancadas da chuva na janela só aumentavam sua dor de cabeça. Com as pernas trêmulas seguiu em direção a porta de entrada e ao tocar no trinco pensou que ia desmaiar. Ela estava fechada, não havia como escapar. Segundos depois, andava de um lado para o outro da sala buscando o controle da situação, mas o mundo insistia em correr mais rápido. Foi até o outro quarto e encarou com espanto o rosto quadrado, esquálido da velha. "Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega essa menina que tem medo de careta...", ouviu a voz da criança que cantava sem parar e sentiu o peito fervilhar como se estivesse dentro de um forno. Por que não nos deixa em paz? Por que nos manter presas aqui?, gritou encarando a velha. Sentiu uma forte dor no estômago. Há quanto tempo não comia algo? Não lembrava. Pobre criança, já não sabe mais sorrir!, pensou com tristeza.
Correu até a cozinha e encontrou uma garrafa de gim fechada. Que alívio, ela vai se sentir melhor!, pensou enquanto abria a bebida. Encheu o copo e, em seguida, voltou ao quarto com a garrafa e ofereceu a bebida a velha que tomou de um só gole. Não gosto de você, te odeio o suficiente para te matar. Por favor, desista! Não me olhe assim, com esse olhar caído, fraco, não terei pena de você! Não use seu sofrimento como pretexto para nos prender aqui! Vou revirar cada canto dessa casa e descobrir onde escondeu a chave. Vou pegar a criança, sair por aquela porta e encontrar meu amor. Sim, eu sei viver um grande amor, ao contrário de você! Por isso fica assim com essa inveja no peito e com esse desejo de morte, disse vendo a velha virar mais um copo de gim. Por que não se mata de uma vez? Não sabe que não pode manipular os desejos do mundo? Não são nossas vontades que fazem a faca cortar nossos pulsos, mas nossas fraquezas. São elas que dão poder às coisas. Então, vá em frente, velha! Pegue essa faca que você deixou sobre a cama, pois fraqueza é o que não lhe falta! Você não consegue, não é? Não minta pra si mesma, não esconda suas limitações. O nome disso é covardia!, disse encarando a velha que, nesse instante, tomava mais uma dose de gim. "Dorme neném que a cuca vem pegar, papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar...", a voz da criança a deixava em pânico. O que você fez com a menina? Vamos, diga! E as chaves, onde estão as chaves?, gritou histérica. Por que você faz isso? Por quê?, perguntou com um fiapo de voz. Você foi amada, descobriu o real sentido de levantar a saia e no lugar de se sentir feliz, se tornou inquieta e medrosa. Penetrou mais em você do que no amor que poderia ter te dado tudo e não gostando do que viu, se tornou sua maior inimiga. Perdeu e diante do abandono e da solidão só fez envelhecer, disse revirando tudo pelo quarto. Essa brincadeira toda me perturba. Vou encontrar essa chave e, ao contrário de você, uma fracassada, vou em busca da felicidade. Vou em busca do amor perdido. Vou dizer que ao seu lado dou as costas a tudo que faz tremer a felicidade, que sua companhia me rouba de uma vida miserável e que isso me deixa mais distante da morte. Direi que o amo e se minhas palavras não forem suficientes para trazê-lo de volta, não ficarei de braços cruzados como os covardes que tentam se matar com as mãos nuas, falarei com o olhar, com as mãos, com as coxas, com os pêlos, com o sexo faminto e de cada uma dessas partes que fazem esse amor doarei sua porção mais generosa, doce e erótica, até ele purgar todas as dores, tristezas e dúvidas e me levar ao gozo dos que amam deixando escapar da sua boca um "eu te amo"! Seremos causa e efeito, sob o comando da emoção no espaço e no tempo encontraremos a inteligência do amor e reduziremos a estupidez a pó. Vê a velha tomar mais um gole de gim e sente a cabeça girar. Amamos de maneira diferente. Não vou deixar você tirar ele de mim porque não suporta me ver feliz. "O cravo brigou com a rosa, debaixo de uma sacada, o cravo ficou ferido e a rosa despetalada!", a voz da menina em sua cabeça a deixava cada vez mais desorientada e a amargura da velha já cobria por completo seu juízo. Sei que perdi, não precisa me lembrar disso. Eu vou gritar. Vou gritar até que apareça alguém para me salvar, disse correndo desesperada até a porta de entrada.
A chave está na porta!, constatou em pânico. Como não a vira antes? Deu altas risadas. Gargalhou muito, até a exaustão, até dobrar a esquina daquela emoção extrema e desabar num choro grave, sofrido. " O anel que tu me deste era vidro e se quebrou. O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou!", era a voz da criança que escutava cada vez mais forte. Voltou ao quarto sentindo a alma pesada, capaz das piores atrocidades. Ficou mais uma vez em frente ao espelho e encarou os olhos da velha Ofélia dentro dela, observou sua inércia, seus lábios enrugados que jamais ousariam dizer o que sonhava, que nunca soube se enfeitar de sonhos, seus pés fincados no chão frio e decidiu se salvar daquele mal que a atormentava. Pediu ajuda a pobre criança Ofélia, mas ela desaprendeu a sorrir, desaprendeu a brincar. Antes tão cheia de vida, agora, um pequeno raio de luz, muito fino e frágil, uma voz de saudade, doces lembranças pulando corda, caindo no poço, chupando manga nos quintais. A criança, a velha e a mulher, três forças desordenadas que formavam a Ofélia. Três em uma. Quantas faces cabem em nossa alma? Qual delas irá cuspir na vida enterrando os desejos das outras sete palmos debaixo do chão? Não importa. A velha venceu. Há momentos em que devemos proibir a compaixão pois ela torna santo o que devemos desprezar. "A canoa virou, por deixá-la virar, foi por culpa de Ofélia que não soube remar." Nenhuma palavra mais foi dita. Entre ela e a realidade, somente o silêncio e a distância. Ali, diante do espelho, com a certeza de que todas as promessas e desejos da infância se perpetuam, Ofélia deu adeus a si mesma. Sem rodeios, cortou os pulsos, matando a mulher, a velha e a criança Ofélia de trinta e cinco anos.
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
Sete e Um
Cláudia Magalhães
Vivemos num mundo onde almas se procuram e quando se encontram morre parte do nosso céu ou inferno. Nessa oração, a vida nos aprisiona com o que nos resta dessas curas até o encontro fatal, derradeiro, que, independente de ser predestinado ou apenas uma questão de sorte, nos prova que estamos sempre em busca da morte. E foi num duelo com esta que conheci o riso e o choro, mas aprendi a não debochar.
O amor nunca me pegará! Esse pensamento me acompanhava desde a mais tenra idade. Na verdade, não queria conhecê-lo, pois sempre tive medo dos heróis, eles não são perfeitos e suas falhas me aniquilariam. Tamanho era o meu medo de encontrá-los ou reconhecê-los que passava grande parte do meu tempo dentro de mim. Em minhas tocas, em minhas esquinas, virei a morte dos humanos, a que vive onde a vida escarra. Seguia diante da vida impondo meus desejos de sangue e minha sede de saliva, mudando a realidade, moldando-a de tal forma que ela atendesse a todos os meus desejos. Eu, algoz e vítima, a todo instante me perseguia e, com medo do amor, acelerava o tempo levantando minha saia de solidão e revelando minhas vergonhas. Precisava enrubescer para me sentir viva.
Aos vinte e dois anos quando meu primeiro namorado, com um buquê de flores, pediu-me em casamento, meia hora depois desejei ardentemente que ele tivesse um infarto fulminante na hora do jantar. O segundo, quando eu tinha vinte e cinco anos, pediu-me em casamento e me entregou um jogo de panelas, imaginei ele, que tinha Hipsifobia, medo de altura, seguindo até a varanda do meu apartamento e se atirando do sétimo andar. Aos trinta anos, desejei que o meu terceiro candidato a marido perdesse a consciência durante sua caminhada matinal, enquanto eu manuseava com tédio o presente que acabara de ganhar, um álbum de fotografias. Aos trinta e três imaginei meu quarto pretendente, depois do pedido, morrendo com uma dor torácica ao tentar levantar o meu presente que estava sobre o meu tapete, uma televisão. Aos trinta e seis, enquanto eu estampava minha cara de tédio ao abrir meu presente, uma caixa com três perfumes doces, imaginei o quinto, que sofria de síndrome do QT longo, indo dessa para uma melhor, sofrendo um gatilho emocional ao conferir que acertara todos os números do bilhete da loteria que esquecera de apostar. Aos trinta e seis, imaginei o sexto, que sofria de Wolff-Parkinson-White, uma doença que atinge em média quatro a cada cem mil pessoas, morrendo por excesso de exercícios na bicicleta que me trouxera de presente e aos trinta e nove anos senti uma enorme felicidade imaginando meu sétimo pretendente morrendo com uma parada cardíaca depois de me presentear com um livro de auto-ajuda e não teria desfibrilador portátil, ressucitação cardiopulmonar e nenhum medicamento que o salvasse. Embora as situações fossem outras, as vítimas e o que tem dentro delas também, na hora do pedido de casamento sentia uma espécie de assombração por todos e assustada sempre dizia: Não! Ao desejar suas mortes não tinha o menor rasgo de sofrimento, pelo contrário, um enorme alívio me consumia.
O oitavo pretendente, depois de tomar uma garrafa de vinho, na mesma noite em que nos conhecemos, me pediu em casamento e, sem nenhum presente em mãos, aproximou-se com gestos rápidos e tirou minha roupa. Senti um tremor na alma que a cada olhar dele se emocionava e tentando recusar essa emoção perdi a lucidez. Lembro que em pensamento o chamei de irritante, vadio, louco, mas um turbilhão de sentimentos me invadiu, o que não ousaria resumir em uma única palavra. Entrei na mais perigosa fuga. Ali, num assalto do tempo ou num acordo cúmplice com a morte, o amor me alcançou. Feito flores "bocas-de-lobo" em meio a espinhos encheu-me de um carinho violento e passei a me sentir em perigo. Ele despertou a beleza e a ternura que me inquietava, penetrou minha carne seguindo o terço das emoções, rezou sobre meu sexo sem pressa, elevando sua temperatura tal qual um vulcão prestes a entrar em erupção e com seu líquido quente eletrizou meu corpo até as pontas dos meus cabelos, as raízes do meu tempo, de uma maneira tal que, naquele instante, eles pararam de crescer. Em seguida, levou-me até o inferno sem tirar-me do altar. Depois das horas de amor, o vi perdendo os sentidos. Em desespero, toquei em sua carne fria, em suas mãos roxas, em seu rosto distante dos sorrisos que exaltaram e iluminaram a noite. Diante da sua morte, pude ver o mundo faminto desde sua criação devorar-me, enquanto pessoas vestidas iguais me ofereciam flores sob murmúrios que exprimem grande devoção a dor ou total ausência desta, cheios de horror diante do infeliz destino da assassina, da desgraçada, da besta-fera, da que seria infeliz no amor até o momento da terra cuspir em sua cara. Com a dor fazendo ondas em meu peito, pensando em sua ausência, em sua carne apodrecendo, entrei em desespero! Foi preciso vê-lo frágil, fraco, ver a vida cuspí-lo para descobrir que ele pertencia à minha vida. Minutos depois, o perfume da paixão me subiu às narinas e me trouxe à realidade. Com grande alívio, observei seu rosto cheio de cor e o seu sorriso que antecipava as horas de prazer, as quedas livres do gozo e tudo o que até hoje me exprime ternura. O seu amor me torna invisível aos olhos da morte, ele disse feliz, como se lesse os meus pensamentos. Há dez anos ele repete essa frase e, nus, continuamos roubando os sonhos do mundo, nada mais justo quando se quer viver um grande amor.
sexta-feira, 7 de maio de 2010
Luz e Sombra
Cláudia Magalhães
Seja bem-vindo! Estava em companhia da solidão com meus devaneios e delírios, mas sua presença trouxe grande conforto ao meu coração e tenho absoluta certeza que nosso convívio será bem agradável. Deixe o espírito livre. Leia com os olhos da alma. Livre-se de tudo o que causa novas formas de aprisionamento. Há ou não algum juízo no amor? Não fuja! Vamos, responda! Eles estão aqui em suas realidades de luz e sombra e interrogam cada um de nós.
Ela não dorme desde que nasceu. Ele, todas as noites, tem pesadelos. Quando acordados, são estátuas que sonham voando. Foram gerados num lugar qualquer, e como todo lugar no mundo, habitado por anjos e demônios. Estes, criados do excremento, andam nus, e por serem desprovidos de alma não sentem culpa, nem remorso. São superficiais, fúteis, carregam dentro de si o oco do mundo. Os primeiros, por lhes faltarem a carne, são dissimulados, hipócritas, gozam para dentro, sufocam-se com o próprio gozo para camuflarem suas fraquezas. Nenhum deles é a criatura perfeita que empresta graça e divertimento necessários ao jogo da vida. Falta-lhes o amor, que nesse caso nos provaria o equilíbrio de tudo o que há sobre a terra. Por isso, vez ou outra, um anjo nasce revestido da carne e um demônio descobre dentro de si uma alma. Foi o que aconteceu com nossos protagonistas, os primeiros a experimentarem esse sentimento feito de luz e sombra.
Eles se conheceram numa noite onde ninguém poderia roubar as vontades de uma lua grávida de desejos, nem esfriar os girassóis que buscam o céu. As estrelas, ansiosas para testemunharem o nascer do amor, trocavam incansavelmente de lugar, alimentando, até hoje, os sonhos dos que buscam a saliva que já tem a cor, o cheiro e a medida exata para fazerem ateus acreditarem no divino e que tornam mais escorregadios os dias. Eles se procuraram, se encontraram e se descobriram perdidos num sentimento, até então, sublime. Beijaram-se. Sentiram frio. Sentiram calor. E tudo sobre a terra parecia ter um fim, menos o sentimento que, naquele instante, fazia seus corações flechados doerem e, perdendo o fôlego, gemeram, sem entenderem ao certo o que queriam dizer. Com as carnes escancaradas, lambuzaram-ze, estouraram-se, fartaram-se de vida e tudo era suor, gemidos e paz do início dos tempos. Eram almas disparadas por todos os lados. Seus olhos carnívoros comiam o que de um subia ao céu e o que do outro caía sobre a terra. Exalavam amor pelos olhos, pelas mãos, pelos sexos inchados, descarados, vivos, e no vai e vem do amor, quando um saía do outro, tudo era fogo do inferno, assavam demônios e quando, novamente, se encaixavam, tudo era dilúvio, afogavam anjos e viravam pérolas no fundo do mar. Fartos no gozo deram risadas, sem perceberem que a carne quando ama torna-se transparente. Tudo no outro era tão urgente que ignoravam os anjos e demônios que habitam a terra e que, até hoje, morrem em vida por falta de amor, do perigo que estes representam e que uma imagem perfeita, sublime, despertam nestes os mais obscuros desejos.
Certo dia, enquanto ele observava maravilhado sua amada em sono profundo (depois que se conheceram ela passou a dormir e ele começou a sonhar. Coisas do amor...), aproximou-se dele a alma falsa de um anjo.
Anjo: O que você sente por essa mulher? - pergunta com voz doce, suave.
Ele: Amor...
Anjo: Ela, o que sente por você? - insiste.
Ele: Ela me ama.
Anjo: Tem certeza disso?
Ele: Eu sinto...
Anjo: Você é um anjo, ela é um demônio... Ela já foi por você contrariada?
Ele: Por que faria isso?
Anjo: Experimente dominá-la... Não permita que ela fique por cima na hora do gozo, só assim você poderá ter a certeza do seu amor.
E o anjo se despediu deixando nele um tormento e, com este, um enorme poder de imaginação. Ela despertou com o peso do corpo amado sobre o seu. Gostou. Amou. Sentiu seu corpo repleto de prazer molhar a terra. Depois de se deixar dominar por um tempo, tentou inverter as posições, mas ele a impediu com firmeza.
Ela: Por que quer me manter sob a tua sombra? - pergunta com doçura.
Ele: Você é uma mulher, portanto deve estar sob mim, suportar o peso do meu corpo.
Ela: Entendo que somos terra e vontades. Fomos criados do mesmo barro, por isso somos iguais. Vamos inverter nossas posições. Assim, seremos iguais em corpo e em alma - diz tentando, novamente, inverter as posições, mas ele a impede.
Ele: Sou um anjo e você, um demônio. Minha carne foi criada do pó puro e a tua, do excremento. Portanto você é submetida a mim.
Ela: Maldito! Mil vezes, maldito!, grita sentindo-se ferida, humilhada.
Terminada a discussão, desfaz-se o casal. Ela descobriu nele a vaidade de um anjo e ele encontrou nela o orgulho de um demônio. A dor contida endureceu seus corações deixando somente um enorme vazio, uma angustiante sensação de fracasso. O mesmo coração que amava, que tinha para o outro todas as atenções, todos os cuidados, criou, naquele momento, um jogo de ofensas que multiplicava as sombras da terra e o mundo perdeu a cor. Com essa competição transformaram-se em sanguessugas. Ela foi amar com os demônios, ele com os anjos. Colocaram-se nas mais humilhantes situações. Engoliam gozos que não lhes permitiam cantar depois, que lhes secavam a garganta e lhes abandonavam da própria imagem. Queimaram as flores, afogaram os desejos, ficaram fartos de solidão. Mas o ódio era apenas uma espécie de verniz sobre um amor sufocado que insistia em ficar e a vida já cansava seus corações. Passaram a procurar um pelo outro. Ele entrou no inferno, ela no Paraíso. Correndo na mesma velocidade, saíam de um para o outro, numa busca infinda, pois enquanto um olhava para o céu o outro mergulhava em águas profundas. Cansados daquela busca, recusaram-se a viver naquele mundo preto e branco, de outra forma que não fosse ao lado de quem lhes apresentou a poesia, a música e o lirismo. Saltaram da vida e viraram lenda. Depois de um curto momento de escuridão, encontraram-se parados, nus, flutuando no céu. Nunca mais seriam bonecos de barro, e sim, o Sol e a Lua. Mas o tempo do amor não perdoa as fraquezas. Eles não poderiam se tocar, nunca mais... Ele é o dia, ela é a noite. Ela voltou a não dormir e ele, todas as noites, a ter pesadelos. Descobriram, tarde demais, que não há beleza em ter defeitos, a única saída é sonhar que eles podem ser amados na dor, somente sonhar, pois há sempre uma luz para cada sujeira e tudo passa a ser verdade. Agora, somos do amor uma lenda. Os poucos anjos com carne e demônios com alma serão pequenos diante de nós, o amor será tão raro quanto um eclipse e todos aqueles que tentarem nos matar, morrerão, ela falou com tristeza.
Por isso, caro amigo, tenho os pés na lama, mas o olhar voltado para o céu. Quero os naufrágios e o fogo do inferno e não ser, simplesmente, um anjo ou um demônio. Não quero oferecer minhas misérias na correnteza da vida, nem guardar do amor somente gozos e suspiros. Mas, apesar de querer enfeitar minha vida e virar lenda, de querer o perigo para obter o descanso, pergunto-lhe, novamente: Há ou não algum juízo no amor?
sábado, 27 de fevereiro de 2010
Amor em Paris
Cláudia Magalhães
Clara está no tempo dos amores mal curados, onde o gozo é controlado por um anjo ou demônio, e este ou aquele, deitado a seu lado, com a mão esquerda torna febril e trêmula a sua fenda e com a direita injeta em sua mente doces recordações do passado, paralisando-a por completo.
É meia-noite. Há horas, ela permanece imóvel em sua cama, lugar onde dormiu por seis anos com um amor que, por ingratidão e egoísmo, há uma semana não está mais ali. Algo difícil demais para se compreender e que torna loucos os que andam pela terra.
Ela leva a sua mão em forma de concha até o sexo, pois é assim que rezamos para o amor, e sonhando com os míseros segundos em que tocaria as estrelas, tenta acariciar sua lua úmida até ela tornar-se, novamente, seca, fazendo girar mais rápido o mundo, mas as lembranças do passado estrangulam seus dedos, enchendo-os de verrugas e vergonha.
A enorme vontade de tê-lo, de possuí-lo, a faz perder o juízo. Vou a Paris. Vou em busca de Vinícius!, pensa. Segundos depois, ela enfrenta descalça as ruas desertas e o frio da madrugada, usando apenas seu vestido longo, florido que, por vezes, usava como camisola. Seus gritos entram pelas frestas das portas e das janelas quebrando o silêncio que comanda a decência. Quando um ou outro a pergunta, O que aconteceu, mulher?, ela responde, Vou a paris. Vou em busca de Vinícius!, e segue andando pelas ruas do outro lado do mundo como se fosse a dona delas. Pergunta a todos os que cruzam seu caminho por um homem alto, barbudo e grisalho e diante do silêncio ela responde, Ele está em Paris! Ele está me esperando em Paris! E segue falando da importância das mãos, pois nelas moram as vontades mais urgentes, falando da imensidão do mundo e do desejo que tinha com o homem amado de morar na Cidade dos Sonhos, para novamente, falar das mãos e do desejo, repetindo, incansavelmente, as mesmas palavras. Tenta, por vezes, se calar e escutar as histórias sem pé nem cabeça dos homens, mas ela tem pressa em se livrar dos sofrimentos da vida e segue sem escolher o caminho e sem saber ao certo quem ela é, molhando os pés na lama acreditando que é o mar, vivendo de esmolas, bebendo cachaça ou conhaque, pedindo a benção a Deus que segurando-lhe o juízo não precisa fingir que lhe deu, até adormecer nos bancos das praças ou nas portas das igrejas e sonhar voando.
Uma hora depois que ela partiu, Vinícius, arrependido de mais uma vez tê-la abandonado, entra no apartamento. Vou pedir perdão e milhões vezes milhões de vezes direi que a amo e nunca mais a farei chorar!, pensa, procurando-a com o peito sufocado pela saudade, mas é tarde demais.
Ele a encontra no quarto com a alma liberta. Ora caminhando como uma rainha, ora curvando-se e implorando coisas ao vento. Minha carne foi criada do pó impuro. Meu cérebro, uma grande duna, com a memória e os desejos dos ventos, encheu com o mel do mundo e com os ferrões das abelhas o meu sangue, que de tanto morrer, gerou em meu peito um enorme coágulo chamado coração. Uso salto, quero meus pés com gosto de rua na direção dos abismos. Há muito tempo, o amor me ensinou a cair, agora quero aprender a voar, diz olhando para ele, mas nada vê. A sua carne está acorrentada pelas vontades de sua alma, que cansada de sofrer liberta-se de si mesma, vai a todas as partes do mundo e confunde-se com outras. Desatenta e livre, muda de vontade de uma hora para outra, se reinventa a todo instante. Suas pernas encontram becos escuros, lama, sargaço, o mar e a imensidão das águas, enquanto sua cabeça de lua abraça o cruzeiro do sul, a Ursa maior, as três marias, e não somente elas, mas toda a constelação. Múltipla, infinda, ela é a dama, a mendiga, a poeta, a vítima, a algoz, a que ri e chora ao mesmo tempo. Ela é Clara, a sua Clara! Ele observa a mulher que ama, que partiu sem volta para a cidade dos sonhos, deixando em seu peito uma chuva que nunca vai parar e os seus olhos enchem-se de lágrimas.
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
A queda dos Anjos
Cláudia Magalhães
Morrerei, pontualmente, às dezoito horas. Hora da queda dos anjos quebrando suas máscaras, fazendo uivarem os lobos da terra. A minha alma branca, mistura das cores e manchas do meu passado, partirá vendo o Sol, com seu hálito quente, levantar a saia da Lua e entregar-lhe os desejos da saliva do dia, fazendo-a parir estrelas.
Não! Não faço uso do deboche, nem perdi o juízo, aceito minha loucura e por isso considero-me são. Vivo de saudade e de milagres e afirmo que, pontualmente, às dezoito horas, soltarei a vida e descobrirei caminhos ocultos. Na companhia de uma bebida qualquer, papel e caneta, escreverei a última palavra do meu último verso, e nesse instante, Ela chegará com o seu amor hipnótico, me beijará apaixonadamente até que eu perca os sentidos. O meu corpo em riso libertará minha alma com tamanho desprendimento que faria chorar a mais terrível das criaturas. Em seguida, a seguirei devagar, sem nenhum alarde, pois assim fazem os que sabem morrer.
Ah, Morte amiga! Amiga eterna! Razão da nossa infância, mocidade e velhice. Testemunha única e silenciosa de todos os nossos atos, sem perdão ou punição. O que eu era antes da tua existência? Loucura minha... Tudo nasce e morre, menos você, única certeza, presente ou ausente. Desde que você levou o meu amor, há seis meses, aguardo a sua chegada feito um morto-vivo. Quantas milhares de alegrias eu tinha e em todas ela estava presente! Vem, afasta-me dos cansaços da vida e deixa-me beijar aquela que amo e que, agora, veste-se de asas e desejos que fogem da terra. Leva-me docemente ao seu encontro, deixa-me dançar em seus braços e, juntos, amar a tua simplicidade sobre uma estrela qualquer. Faremos amor sem os limites da carne, somente o comando das nossas vontades em febre sob o teu perfume de flores. Se bater em nossos corações alguma tristeza, não há de ser nada, é a dor da ausência indo embora. Deixa-nos chorar por alguns instantes, vista-nos de sonhos e depois por ser você a solidão, essa enorme vontade de ir, nos esqueça. Seremos, então, inspiração para os poetas, bêbados e loucos, únicos que sabem amar com dignidade. Ah, espera! Doce e amarga espera! Adeus!
Ele abandona a caneta sobre o papel, transpira muito. Com o coração explodindo na garganta observa, finalmente, o relógio da parede marcar, pontualmente, dezoito horas. A ansiedade em sua alma é tão grande que lhe causa dor física. Abre a gaveta do velho birô de madeira e, segundos depois, ouve-se o barulho do tiro.
O fim tão desejado não veio de lugar algum. A queda violenta fez nuvens pesadas e cinzentas esconderem as estrelas, trazendo a chuva que, nesse momento, para muitos, não é bem-vinda. Estava derrotado por completo. Nenhum canto de amor, nenhuma posse ou território marcado, somente uma eterna agonia solta pelo espaço e que, a todo instante, pousa na terra que apaga as pegadas e guarda a verdade da carne, o pó, e a verdade dos homens, o tudo e o nada, provando que mesmo sem a sua existência ela continua a girar.
Não! Não faço uso do deboche, nem perdi o juízo, aceito minha loucura e por isso considero-me são. Vivo de saudade e de milagres e afirmo que, pontualmente, às dezoito horas, soltarei a vida e descobrirei caminhos ocultos. Na companhia de uma bebida qualquer, papel e caneta, escreverei a última palavra do meu último verso, e nesse instante, Ela chegará com o seu amor hipnótico, me beijará apaixonadamente até que eu perca os sentidos. O meu corpo em riso libertará minha alma com tamanho desprendimento que faria chorar a mais terrível das criaturas. Em seguida, a seguirei devagar, sem nenhum alarde, pois assim fazem os que sabem morrer.
Ah, Morte amiga! Amiga eterna! Razão da nossa infância, mocidade e velhice. Testemunha única e silenciosa de todos os nossos atos, sem perdão ou punição. O que eu era antes da tua existência? Loucura minha... Tudo nasce e morre, menos você, única certeza, presente ou ausente. Desde que você levou o meu amor, há seis meses, aguardo a sua chegada feito um morto-vivo. Quantas milhares de alegrias eu tinha e em todas ela estava presente! Vem, afasta-me dos cansaços da vida e deixa-me beijar aquela que amo e que, agora, veste-se de asas e desejos que fogem da terra. Leva-me docemente ao seu encontro, deixa-me dançar em seus braços e, juntos, amar a tua simplicidade sobre uma estrela qualquer. Faremos amor sem os limites da carne, somente o comando das nossas vontades em febre sob o teu perfume de flores. Se bater em nossos corações alguma tristeza, não há de ser nada, é a dor da ausência indo embora. Deixa-nos chorar por alguns instantes, vista-nos de sonhos e depois por ser você a solidão, essa enorme vontade de ir, nos esqueça. Seremos, então, inspiração para os poetas, bêbados e loucos, únicos que sabem amar com dignidade. Ah, espera! Doce e amarga espera! Adeus!
Ele abandona a caneta sobre o papel, transpira muito. Com o coração explodindo na garganta observa, finalmente, o relógio da parede marcar, pontualmente, dezoito horas. A ansiedade em sua alma é tão grande que lhe causa dor física. Abre a gaveta do velho birô de madeira e, segundos depois, ouve-se o barulho do tiro.
O fim tão desejado não veio de lugar algum. A queda violenta fez nuvens pesadas e cinzentas esconderem as estrelas, trazendo a chuva que, nesse momento, para muitos, não é bem-vinda. Estava derrotado por completo. Nenhum canto de amor, nenhuma posse ou território marcado, somente uma eterna agonia solta pelo espaço e que, a todo instante, pousa na terra que apaga as pegadas e guarda a verdade da carne, o pó, e a verdade dos homens, o tudo e o nada, provando que mesmo sem a sua existência ela continua a girar.
domingo, 15 de novembro de 2009
Meio Fio
Cláudia Magalhães
Há dias que possuem vida própria e são dotados de uma consciência má, hábil, que adora o perigo das coisas subterrâneas, de tudo o que nos causa espanto, nos fazendo em poucos segundos beber a beleza e vomitar os desejos de uma vida inteira. Em mais um desses dias, sentado no meio fio, ele mergulha a mente na idéia de felicidade, aproveita a distância da mulher amada, toma por vezes o seu lugar, moldando-a de tal forma que ela atenda a todos os seus desejos e, em menos de uma hora, mesmo ausente, ele jura ser capaz de apalpá-la.
O barulho de algumas pessoas se aproximando o faz voltar a realidade e ela escapa dos seus pensamentos. Se ao menos tivesse uma daquelas pedras que experimentara pela primeira vez na noite anterior junto àqueles mendigos. Ela lhe permitiria ir até o outro lado do mundo. Lá, vestido com elegância, encontraria o seu amor em algum sonho, a cobriria de flores e depois ficaria em silêncio até acalmar o espírito. Pega a garrafa de cachaça e toma um gole. Aquela seria a última garrafa, depois voltaria pra casa. As pessoas que passam o olham com desprezo. Idiotas! Imbecis! O que eles sabem sobre o amor?, pensa vendo o Sol se aproximar da sua cama de papelão improvisada no canto da parede. Há quanto tempo estaria naquela rodoviária? Seriam dias, meses ou anos? Perdera a noção do tempo. Estava exausto, não pregara o olho a noite inteira e a dor de cabeça que sentia lhe queimava o juízo. Vê o primeiro ônibus da manhã chegando. Hoje eu volto pra casa. Essa é a última garrafa. Vou voltar e passar um ano sem beber!, pensa tomando mais um gole da bebida.
Levanta e vai em direção ao banheiro. Observa, por alguns segundos, a sua imagem no espelho quebrado. Uma imagem tão distante do homem bem-sucedido de algum tempo atrás. Vê o rosto oleoso, a barba cheia e o olhar triste. Sente uma enorme vontade de se esconder, uma forte angústia no peito. Lava o rosto, as mãos, joga água nos cabelos longos e sujos e se penteia com os dedos. Toma o último gole da garrafa e a joga no lixo. Pronto. Aquela foi a última, agora voltaria pra casa. Sai do banheiro catando no bolso algumas moedas que mendigara na noite anterior e compra um pastel de carne. Sente a massa entalada na garganta. Força-se a comer, precisa aliviar a dor no estômago. A cada minuto a sua angústia aumenta. Sente-se depressivo, torturado. Preciso beber algo, pensa catando algumas moedas no bolso. Compra mais uma garrafa de cachaça, prometendo a si mesmo que aquela seria a última, depois pegaria um ônibus e voltaria pra casa. Senta no meio fio e começa a beber. Sente-se eufórico, leve e, de certa forma, feliz. A angústia desaparece dando lugar a uma imaginação rara, sem alicerces no tempo, nem passado, nem presente, nem futuro. Uma imaginação de algum lugar sagrado dentro dele, que desconhece ou ignora o seu drama. O rosto da amada lhe aparece, evocando todas as palavras que lhe são caras: amor, perfume, prazer, paz, sonhos... Ele mergulha a cabeça num mar vermelho de desejos e ao sabor da bebida, ela faz amor com seus demônios e tem filhos. Centenas deles.
O Sol já se despede enquanto ele observa a garrafa vazia. Sente um medo terrível. Tudo o que não vem de dentro dele o assusta, é pequeno, sujo. Gosta da solidão da bebida, de viver o que não existe. Ele ama. Cata as últimas moedas do bolso. Tinha o valor exato da passagem do ônibus. Agora eu volto pra casa, pensou mais uma vez. É isso. Voltaria e começaria uma nova vida. Ela se foi e deve estar feliz com isso. Não iria sofrer por ela. Vadia e fútil, com certeza já estaria seduzida por uma beleza nova. O mundo é tão grande... Mas o seu coração recusa a desprezar o que ama e se põe inquieto. Prepara dentro dele um buraco cheio de abandono, amargura e desilusão e misturado a esses monstros só pensa em lhe ferir. Ele chora. Chora porque procura aquela que perdeu, mas aquela que perdeu não o procura. Chora porque ela tem asas e ele, os pés na lama. Precisa de uma bebida. Ela o ajudará a sentir melhor. Se ao menos tivesse uma daquelas pedras...
Pega o dinheiro no bolso e compra mais uma garrafa. Senta no meio fio e toma um gole. Esta é a última, depois eu volto pra casa, pensa vendo os seis mendigos se aproximando ao longe. Seis, seu número da sorte. Ao menos passou a ser depois que a conheceu, constatou sorrindo, sentindo a angústia, novamente, ir embora.
Há dias que possuem vida própria e são dotados de uma consciência má, hábil, que adora o perigo das coisas subterrâneas, de tudo o que nos causa espanto, nos fazendo em poucos segundos beber a beleza e vomitar os desejos de uma vida inteira. Em mais um desses dias, sentado no meio fio, ele mergulha a mente na idéia de felicidade, aproveita a distância da mulher amada, toma por vezes o seu lugar, moldando-a de tal forma que ela atenda a todos os seus desejos e, em menos de uma hora, mesmo ausente, ele jura ser capaz de apalpá-la.
O barulho de algumas pessoas se aproximando o faz voltar a realidade e ela escapa dos seus pensamentos. Se ao menos tivesse uma daquelas pedras que experimentara pela primeira vez na noite anterior junto àqueles mendigos. Ela lhe permitiria ir até o outro lado do mundo. Lá, vestido com elegância, encontraria o seu amor em algum sonho, a cobriria de flores e depois ficaria em silêncio até acalmar o espírito. Pega a garrafa de cachaça e toma um gole. Aquela seria a última garrafa, depois voltaria pra casa. As pessoas que passam o olham com desprezo. Idiotas! Imbecis! O que eles sabem sobre o amor?, pensa vendo o Sol se aproximar da sua cama de papelão improvisada no canto da parede. Há quanto tempo estaria naquela rodoviária? Seriam dias, meses ou anos? Perdera a noção do tempo. Estava exausto, não pregara o olho a noite inteira e a dor de cabeça que sentia lhe queimava o juízo. Vê o primeiro ônibus da manhã chegando. Hoje eu volto pra casa. Essa é a última garrafa. Vou voltar e passar um ano sem beber!, pensa tomando mais um gole da bebida.
Levanta e vai em direção ao banheiro. Observa, por alguns segundos, a sua imagem no espelho quebrado. Uma imagem tão distante do homem bem-sucedido de algum tempo atrás. Vê o rosto oleoso, a barba cheia e o olhar triste. Sente uma enorme vontade de se esconder, uma forte angústia no peito. Lava o rosto, as mãos, joga água nos cabelos longos e sujos e se penteia com os dedos. Toma o último gole da garrafa e a joga no lixo. Pronto. Aquela foi a última, agora voltaria pra casa. Sai do banheiro catando no bolso algumas moedas que mendigara na noite anterior e compra um pastel de carne. Sente a massa entalada na garganta. Força-se a comer, precisa aliviar a dor no estômago. A cada minuto a sua angústia aumenta. Sente-se depressivo, torturado. Preciso beber algo, pensa catando algumas moedas no bolso. Compra mais uma garrafa de cachaça, prometendo a si mesmo que aquela seria a última, depois pegaria um ônibus e voltaria pra casa. Senta no meio fio e começa a beber. Sente-se eufórico, leve e, de certa forma, feliz. A angústia desaparece dando lugar a uma imaginação rara, sem alicerces no tempo, nem passado, nem presente, nem futuro. Uma imaginação de algum lugar sagrado dentro dele, que desconhece ou ignora o seu drama. O rosto da amada lhe aparece, evocando todas as palavras que lhe são caras: amor, perfume, prazer, paz, sonhos... Ele mergulha a cabeça num mar vermelho de desejos e ao sabor da bebida, ela faz amor com seus demônios e tem filhos. Centenas deles.
O Sol já se despede enquanto ele observa a garrafa vazia. Sente um medo terrível. Tudo o que não vem de dentro dele o assusta, é pequeno, sujo. Gosta da solidão da bebida, de viver o que não existe. Ele ama. Cata as últimas moedas do bolso. Tinha o valor exato da passagem do ônibus. Agora eu volto pra casa, pensou mais uma vez. É isso. Voltaria e começaria uma nova vida. Ela se foi e deve estar feliz com isso. Não iria sofrer por ela. Vadia e fútil, com certeza já estaria seduzida por uma beleza nova. O mundo é tão grande... Mas o seu coração recusa a desprezar o que ama e se põe inquieto. Prepara dentro dele um buraco cheio de abandono, amargura e desilusão e misturado a esses monstros só pensa em lhe ferir. Ele chora. Chora porque procura aquela que perdeu, mas aquela que perdeu não o procura. Chora porque ela tem asas e ele, os pés na lama. Precisa de uma bebida. Ela o ajudará a sentir melhor. Se ao menos tivesse uma daquelas pedras...
Pega o dinheiro no bolso e compra mais uma garrafa. Senta no meio fio e toma um gole. Esta é a última, depois eu volto pra casa, pensa vendo os seis mendigos se aproximando ao longe. Seis, seu número da sorte. Ao menos passou a ser depois que a conheceu, constatou sorrindo, sentindo a angústia, novamente, ir embora.
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